quarta-feira, novembro 12, 2014

Tanis, o rapazinho de Cilpes (séc. V a.C.) - A Máscara de Ouro





(frente e verso de uma moeda da época, inspiradora deste conto, da coleção do Dr. Luís  Fraga da Silva)



Tanis sentiu um ligeiro rumor que provinha da zona onde o pai e a mãe dormiam.

Ergueu ligeiramente a cabeça e inquiriu, dirigindo-se à figura que se recortava contra a parede da casa:

          -Onde vai, meu pai? Posso ir consigo?

          - Vem, sim, meu filho. Podes ordenhar os animais enquanto vou à fonte e trago água.

          - E se fizéssemos ao contrário?

          - Não. A tua mãe irá precisar de água e a fonte ainda fica um pouco longe. Demorarias demasiado tempo.

          - Eu? Chego lá num instante, encho o odre e volto.

          - Talvez venhamos a necessitar de água lá mais para o final da tarde. Irás tu, então.

Tanis nascera há 12 invernos, naquele ano em que o vento derrubou a paliçada onde guardávamos os animais. Foi uma trabalheira para os trazer de volta ao redil e eu grávida, já quase sem me poder mexer. Agora está um mocetão, forte e vigoroso, observava a mãe, olhando com orgulho os dois homens da casa.

*

Vindos da ordenha dos animais, o pai permitiu então que o filho fosse à fonte.

          - Vai lá então à água, mas segue pela margem esquerda do rio e toma atenção à corrente junto à ilha, pois choveu lá para a serra e deve vir forte, aí, onde onde as duas correntes se cruzam.

          - Serei cauteloso, meu pai.

Tanis entrou na canoa, que mais parecia o que realmente era, um tronco de cedro escavado ao centro para lá caber uma pessoa.

Passou a ilha sem sobressaltos e ali um pouco mais à frente, onde o rio se espraia como que parecendo adivinhar a foz, seguiu pelo braço de rio que se abria à sua esquerda.

Avançou devagar, dirigindo-se para o local da fonte, quando avistou uma trirreme, de origem fenícia ou cartaginesa.

Continuou, com precaução, mas chamando a atenção dos que já lá estavam.

Saudaram-no, de longe e, ao aproximar-se ouviu chamar pelo seu nome.

          - Tanis? És mesmo tu?

          - Sou, sim, meu senhor.

          - Vem. Sou Melkat, amigo de teu pai.

Tanis encostou à margem, perto da fonte. Retirou o odre que pretendia encher de água e foi acolhido pelo homem que parecia chefiar a galera.

          - Como cresceste, rapaz! Dá cá um abraço. És a cara chapada do teu pai.

E deu ordens para a equipagem:

          - Guardem aí a canoa, encham o odre e abram um espaço para o rapaz. Ele segue connosco.


*

De regresso a casa, na embarcação de Melkat, rapidamente atingiram o local do cruzamento dos dois rios, junto à ilha, e na sua aproximação já avistavam ao longe o cerro da Rocha Branca.

Tanto no topo da elevação, como cá em baixo, no porto junto ao rio, vislumbrava-se o movimento das pessoas, que reagiam à curiosidade de uma embarcação de tais dimensões e com tantos remadores, além da enorme vela central insuflada pelo vento.

Ao atingir o cais, Melkat fez questão de que fosse Tanis o primeiro a pôr os pés em terra firme, levando o seu odre cheio de água.

Seu pai ali estava, a recebê-lo de braços abertos.

Apertou-o contra o peito e aguardou a chegada de Melkat, que dirigia algumas instruções à equipagem.

Melkat abraçou o pai e teceu qualquer comentário que Tanis julgou que se lhe referia, pois o pai olhou-o com um sorriso cúmplice.

Encaminharam-se para a estrada que subia em direção à povoação.

Ao erguer os olhos, Tanis viu como toda a população apareceu a receber os visitantes e ouviu, prazenteiro, exclamações de júbilo e gritos de boas-vindas.


*

Terminada esta manifestação de acolhimento aos visitantes, pouco durou até que toda a frente do cais fosse invadida por uma completa exposição de produtos disponíveis para comercialização.

A população de Cilpes também se aprestava com a sua própria exposição de produtos a negociar.

Numa agitação pouco comum a esta gente pacata de uma região remota, trocavam-se ânforas de azeitonas por ânforas de azeite, curtumes por ovelhas e cabras, cereal por farinha, carne salgada e pasta de peixe por artigos de cerâmica ou bronze...  A moeda servia para compensar a diferença no valor das trocas.

Esgotada esta fase comercial e até porque a noite se aproximava, teve início a festa de confraternização: comia-se, bebia-se, cantava-se até não poder mais.

Já recolhido para adormecer, Tanis despertou sobressaltado por uma gritaria infernal que parecia provir lá de baixo, do porto. O pai ergueu-se, saiu e intimou-o a ficar.

Regressou, passado pouco tempo com um ar divertido, sorriso nos lábios.

          - Que se passa? - perguntou a mãe.

          - Está lua cheia. A maré inundou o cais. Os que lá dormiam acordaram encharcados.

          - A festa parece ter recomeçado!  -  segredou Tanis, de ouvido à escuta.

          - Creio que não vai durar muito mais. - adiantou o pai - Já estão todos exaustos.

          - Exaustos?! - exclamou a mãe, com o seu particular sorriso de dislate.


*

          - Pai?

          - Sei, filho, e acho que vou precisar de ti.
            Ouviste rumores ali para os lados do armazém, foi?

          - Foi, sim, meu pai.

Tanis foi solicitado a partir para uma empresa de adultos.

O pai pediu-lhe que saísse com a maior das cautelas, virasse à esquerda, e fosse à casa de Baki informá-lo de que o pai iria reunir homens nas traseiras do armazém e que Baki deveria fazer o mesmo lá em baixo.

Ao som de um assobio que imitasse uma coruja, deveriam partir em fila cerrada a caminho do armazém.

Quem fosse encontrado entre as duas filas deveria ser aprisionado por tentativa de assalto.

Em breve, junto de Baki e outros homens, organizados em extensa fila, Tanis aguardava o assobio do pai.

Ao som do assobio, partiu com os homens.

O coração de Tanis parecia querer saltar-lhe do peito. Em passo seguro, caminhava em direção ao armazém.

Passado algum tempo avistaram, por trás do armazém, a outra fila, que se aproximava em sentido contrário.

Nada de anormal.

Mas quando chegaram junto do armazém, cuja porta se encontrava entreaberta, depararam com um corpo inanimado, estendido no chão, caído de costas.

Era Melkat, sem vida, com uma enorme ferida na cabeça.

No chão havia uma poça de sangue.


*

          - Pai. Para uma ferida como aquela seria necessário um machado de bronze, não achas?

          - Sem dúvida, meu filho. Mas há vários machados de bronze por aí.

          - Achas que o assassino seria alguém da nossa aldeia?

          - Duvido, pois o armazém é da coletividade e qualquer um pode usá-lo a seu critério.

          - Poderia ter sido em legítima defesa.

          - Não creio, meu filho. Por aqui já todos conheciam Melkat e consideravam-no um amigo.

          - Mas o machado que o matou teve de ser limpo ou então ainda terá vestígios de sangue, não é, meu pai?

          - Vai a casa descansar a tua mãe, dizendo-lhe que estamos bem e que eu já lá irei.

Tanuk, o pai de Tanis, desceu até ao cais e aproximou-se da sentinela de serviço.

          - Gostaria de falar com o comandante, por favor.

          - O comandante saiu e ainda não voltou, senhor.

          - Poderei falar com quem o substituiu?

       - Ninguém o substituiu, senhor. Na ausência do comandante ou de quem está a exercer essa função, passa a comandar o que lhe estiver a seguir na ordem hierárquica.

          - Posso então saber quem é?

          - O segundo comandante, que também saiu e ainda não voltou. Saiu até antes do comandante.

          - Mais alguém saiu, entretanto?

          - Mais ninguém.

          - Tem a certeza?

      - Absoluta. Mesmo que alguém tivesse saído sem ser por esta escada que eu vigio, tê-lo-ia avistado sobre o cais.

          - Posso falar com quem está agora no comando?

          - Se ele estiver disponível, sim. Um momento.

A sentinela deu instruções em voz alta para o barco.

          - Chamem o oficial de serviço.

Tanuk ouviu chamar por  Radir, provavelmente o oficial de comando.

Quando Radir se apresentou, Tanuk, em voz baixa, inteirou-o do que se estava a passar.

O homem parecia ter ficado sem pinga de sangue. Lívido.

Tanuk perguntou-lhe:

          - Vocês costumam usar machados de bronze?

          - Eu tenho um, por sinal, mas não conheço qualquer outro a bordo.

          - Não se importa de mo mostrar?

          - Oh! - exclamou, com as mãos apertando a cabeça.

          - Que se passa, homem!?  - disse Tanuk, tentando acalmá-lo.

          - Não o tenho comigo. Alguém o roubou. Dei por tal há minutos.

*

Enquanto Radir e Tanuk conversavam, a mulher de Tanuk, Anorah, aproximou-se.

          - Que te traz por estes lados?

          - Creio ter ouvido Tanis a chamar o cão e agora não encontro nem um, nem outro.
         Estou preocupada, porque ele não disse nada e interrogo-me sobre sobre a razão que o terá levado  a vir buscar o cão e não me ter avisado.

          - Estranho! - exclamou Tanuk.
            Anda. Vem comigo.

Tanuk começou  apressadamente a subir a encosta e a dado momento teve que se voltar para trás, esperando por Anorah e disse-lhe:

          - Eu vou apressar-me. Vem no teu passo. Vou na direção do desfiladeiro; tenho um palpite.

A alguma distância do desfiladeiro ouviu ladrar e apressou-se, quase corria.

A dado momento avistou o que procurava.

Quase à beira do precipício, de frente para ele, um homem, provavelmente o segundo comandante, e de costas seu filho, Tanis, que segurava o cão, em fúria, e mantinha o marinheiro imobilizado, junto do precipício.

Aproximou-se.

A lua cheia permitia divisar bem a cena. O marinheiro tinha numa mão um machado de bronze e na outra um certo volume que não conseguia identificar.

Muita gente começou a aproximar-se.

A dado momento o marinheiro deu alguns passos atrás e colocou-se à beira do precipício.

          - Tenha calma, homem, não há nada que não se resolva. Vamos conversar.

Quando falou deu um ligeiro passo à frente.

O marinheiro lançou ao chão o machado e o volume que tinha na outra mão.

Tanuk parou.

          - Venha! -  disse Tanuk - tudo tem solução.

O marinheiro deu mais um passo atrás e precipitou-se.


*

Tanis entregou o cão ao cuidado do pai e foi recolher o machado e a outra peça, caídos no chão.

O machado seria devolvido a Radir, o novo comandante da trirreme, ancorada no cais.

A outra peça não era senão a MÁSCARA DE OURO, o símbolo identificativo da comunidade, até então incrustado num pedestal de madeira de cedro, e que se dizia ser oferta dos deuses aos primeiros habitantes deste lugar.

Grande festa se preparava no cais, em homenagem a Tanis, o rapazinho de Cilpes, o herói que salvou de perda definitiva a Máscara de Ouro.

A festa foi também de despedida da tripulação da trirreme, na pessoa do seu comandante, Radir, que pela manhã seguinte, bem cedo, partiria de regresso a Cartago.

Tanis foi levado em pé, sobre um estrado, como um andor, apoiado em dois suportes de madeira, a que se sustinha, até junto da porta da sua casa.


*

Mais tarde, na noite, a mãe veio deitar-se junto dele para que adormecesse.

A mãe sabia que sem a sua presença ele não conseguiria conciliar o sono, depois de tanta aventura.

Abraçou-o, beijou-o ternamente e disse-lhe ao ouvido, em voz muito baixinha, quase num sussurro:

          - Tanis, meu querido filho, és o herói de Cilpes, e estarás sempre no coração do teu pai e da tua mãe.


Fim
Conto de:
António Baeta Oliveira
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