segunda-feira, novembro 25, 2013

Memórias do blogue (IX)




A Alquimia do Medronho


Foto de um alambique, com a devida vénia a www.refoias.net

























Na sequência da ida à serra, mas a outro lugar que não no Talurdo.



  • (...)
    Naquele Sábado voltámos à Serra, mas a outro lugar. Fomos a casa do Sr. José Joaquim na hora de fabricar medronho, produção que concluímos ser uma das grandes bases económicas da aldeia. No Talurdo o medronho também já não vivia.

    Vimo-lo então naquela manhã de Sábado. A dorna então vazia estava agora cheia de medronhos e água, desde há mais de um mês, fermentando. Um cheiro acre invadia as narinas e o gosto açucarado do fruto do medronheiro, que tínhamos provado no Talurdo, desaparecera já, num fruto que provámos retirado da dorna. Foram precisas muitas horas, muito suor, muitos rasgões de silvas na pele e na roupa, para apanhar aquelas nove a dez arrobas que ali fermentavam.
      - Não. Não é preciso pesar! Toma-se a olho.
    Limpa a caldeira, de cobre a rebrilhar, aceso o forno de lenha de pinho e de eucalipto, ou até de esteva, a crepitar, é a vez do conteúdo da dorna seguir outro caminho. Com os medronhos já na caldeira, o Sr. José Joaquim foi buscar uma prancha de cortiça que cobriu com um pouco de serrapilheira, talvez dos sacos do adubo, colocou-a sobre o forno, junto à caldeira e ajoelhou-se nela, sentado sobre os pés. Era um árabe em oração. Segurou na pá e em movimentos arredondados, amplos, quase baléticos, foi mexendo aquela massa enquanto lhe misturava água, que ali chegava num tubo proveniente da mina próxima.
      - Quanta água põe agora Sr. José Joaquim?

      - Isto é um sentir. Quando puser a pá aqui em pé e ela tombar com um certo jeito, é tempo de fechar a água e, assim que ferva, colocar o cabeção.
    Aprontou o cabeção, colocou-o devagar sobre a caldeira acertando o tubo na serpentina, mergulhada em água no pilão ao lado. Mostrou nas suas mãos o que parecia ser um bolo de massa fresca, que dividia em pequenas porções e colocava nos encaixes do cabeção e da caldeira.
      - Isto é o "azeite", primeira camada dos medronhos que estavam na dorna. Faz-se esta massa que é uma cola que serve para tapar isto - e apontava os encaixes - p'ró vapor na' sair.

    Passado algum tempo, do tubo final da serpentina, que despontava ao fundo da parede do pilão, sobre uma vasilha de plástico, começava a sair um líquido morno, meio turvo.
      - Isto já é medronho, Sr. José Joaquim?

      - Ainda não. Isso é a frouxa. Quer ver?
    Partiu um pauzinho pequenino e com ele revolveu um pouco daquela "frouxa" que havia recolhido num cálice de vidro.
      - Está a ver? Ainda não faz bolhas. Quando fizer bolhas, que se fiquem durante algum tempo, então já é medronho. 'Tá a ver este ferro aqui, ao pé da chaminé? É o registo. Puxo ou empurro um bocadinho para que a saída do medronho seja sempre a mesma. É que o correr do medronho tem a ver com a temperatura do forno e não se pode deixar afogar. Isto é como uma criatura viva. Se lhe tapo o ar, o fogo morre afogado.
    E, como se falasse de um filho doente, carenciado de cuidados, continuava:
      - Quando 'tou no fabrico não saio daqui. Só p'ra ir buscar uma "bucha" ou fazer qualquer coisa assim rápido. Tenho que estar sempre a vigiar.
    Tomou na mão o que me pareceu um tubo, rolhado. Era de cana e continha um instrumento que mais parecia um termómetro. Mergulhou o tubo no líquido, que da serpentina corria lenta e regularmente para a vasilha, encheu-o e nele colocou o tal "termómetro".
      - 'Tá mesmo boa. 'Tá a sair aí com uns 20 graus, quase 21.
    Era um densímetro, um "pesa espíritos", que mergulha mais ou menos conforme a densidade do líquido e cuja escala indica a graduação alcoólica do medronho.
      - Agora faz uma aljofa boa!

      - Aljofa, Sr. José Joaquim?

      - Sim. As bolhas - explicou - quer provar?
    Um calorzinho saboroso espalhou-se-me pelo estômago, um delicado sabor adocicado, a medronho, chegou-me ao paladar e, ao respirar, um cheiro inebriante atravessou-me o nariz. Era a água-ardente de medronho, de sabor que há muito não experimentava e que já raramente reconheço nos restaurantes ou nos cafés quando o bebo no convívio entre amigos.
      - É que agora há pr'aí muita falcatrua! Até já se fabrica medronho sem medronho - brincou, jocoso - devia haver uma protecção ao fabricante e até uma fiscalização, para reabilitar o nome desta bebida. Olhe que eu já fui premiado numa feira de artesanato. Até tenho uma fotografia com aquela senhora que organiza a feira. Não a conhece?

2 comentários:

Manuel Ramos disse...

Belíssimo texto, amigo. Um documentário por palavras. E um belo dia que também usufruí e sobre o qual também escrevi. Só um reparo que é também um esclarecimento, já que a palavra assim como está (aljofa) não existe, é uma corruptela do Sr. José Joaquim. A verdadeira palavra é aljôfar, do árabe(al-Juhar), e que é usada para pérola ou gota de orvalho, exactamente o que nos faz lembrar aquele colar de bolhinhas que o medronho produz quando é agitado e que, dizem, indica o grau alcoólico. Indicará isto que os mouros (árabes) já faziam medronheira?

oasis dossonhos disse...

Um prazer ler-te. Abraço.
Luís Filipe Maçarico