quinta-feira, novembro 28, 2013

Estatuetas e governação







Esta foto foi batida sobre uma pequena estatueta, de entre uma série de estatuetas representativas dos reis da 1ª dinastia, num trabalho do escultor António Villares Pires, com "atelier" junto da Estação dos Caminhos de Ferro. Encontram-se em exposição na Igreja da Misericórdia, em Silves.

É curiosa a abordagem interpretativa destes reis da 1ª dinastia, a permitir a identificação de cada figura real por pormenores da sua intervenção tornados famosos ou por adereços representativos da sua atuação.

A peça acima representa o rei D. Fernando, o último desta dinastia. A foto, na sombra, não faculta uma identificação desse objeto de forma triangular sobre a qual o rei parece apoiar-se. Trata-se de um pormenor da muralha que mandou construir, em Lisboa, hoje conhecida por Muralha Fernandina, que veio a envolver a muralha anterior, a Cerca Moura.

Dom Fernando aparenta um ar concentrado e preocupado, já que receia uma guerra com Castela e teme pela sorte dos seus súbditos. Lisboa crescera muito e continuava a crescer.

Dedicou-se à construção desta enorme cerca, a envolver toda a cidade de Lisboa, à época, e conseguiu construí-la em tempo breve para tamanha obra.

Estes "estadistas", se assim os pudéssemos designar, reinavam a longo termo e a sua preocupação governativa merecia uma projeção a longo prazo.

Hoje em dia, os partidos têm horizontes limitados aos seus mandatos e quando muito preocupam-se com atos breves e rápidos, de encher o olho, ensaiando a tentativa de se manter no poder.

Quando se governa com tão limitados horizontes, há o risco de se perder o futuro.

Faltam-nos hoje homens de Estado, estadistas, com visão a longo prazo, preparando o devir, ainda que com governos de curto prazo.


P.S.
Dom Fernando não tem propriamente a ver com o que falo.
Foi a abordagem da estatueta e do que representa que me levou a estas considerações de ordem política, no bom sentido deste termo, que hoje em dia anda pelas ruas da amargura, muito prejudicado pelas práticas partidárias.


segunda-feira, novembro 25, 2013

Memórias do blogue (IX)




A Alquimia do Medronho


Foto de um alambique, com a devida vénia a www.refoias.net

























Na sequência da ida à serra, mas a outro lugar que não no Talurdo.



  • (...)
    Naquele Sábado voltámos à Serra, mas a outro lugar. Fomos a casa do Sr. José Joaquim na hora de fabricar medronho, produção que concluímos ser uma das grandes bases económicas da aldeia. No Talurdo o medronho também já não vivia.

    Vimo-lo então naquela manhã de Sábado. A dorna então vazia estava agora cheia de medronhos e água, desde há mais de um mês, fermentando. Um cheiro acre invadia as narinas e o gosto açucarado do fruto do medronheiro, que tínhamos provado no Talurdo, desaparecera já, num fruto que provámos retirado da dorna. Foram precisas muitas horas, muito suor, muitos rasgões de silvas na pele e na roupa, para apanhar aquelas nove a dez arrobas que ali fermentavam.
      - Não. Não é preciso pesar! Toma-se a olho.
    Limpa a caldeira, de cobre a rebrilhar, aceso o forno de lenha de pinho e de eucalipto, ou até de esteva, a crepitar, é a vez do conteúdo da dorna seguir outro caminho. Com os medronhos já na caldeira, o Sr. José Joaquim foi buscar uma prancha de cortiça que cobriu com um pouco de serrapilheira, talvez dos sacos do adubo, colocou-a sobre o forno, junto à caldeira e ajoelhou-se nela, sentado sobre os pés. Era um árabe em oração. Segurou na pá e em movimentos arredondados, amplos, quase baléticos, foi mexendo aquela massa enquanto lhe misturava água, que ali chegava num tubo proveniente da mina próxima.
      - Quanta água põe agora Sr. José Joaquim?

      - Isto é um sentir. Quando puser a pá aqui em pé e ela tombar com um certo jeito, é tempo de fechar a água e, assim que ferva, colocar o cabeção.
    Aprontou o cabeção, colocou-o devagar sobre a caldeira acertando o tubo na serpentina, mergulhada em água no pilão ao lado. Mostrou nas suas mãos o que parecia ser um bolo de massa fresca, que dividia em pequenas porções e colocava nos encaixes do cabeção e da caldeira.
      - Isto é o "azeite", primeira camada dos medronhos que estavam na dorna. Faz-se esta massa que é uma cola que serve para tapar isto - e apontava os encaixes - p'ró vapor na' sair.

    Passado algum tempo, do tubo final da serpentina, que despontava ao fundo da parede do pilão, sobre uma vasilha de plástico, começava a sair um líquido morno, meio turvo.
      - Isto já é medronho, Sr. José Joaquim?

      - Ainda não. Isso é a frouxa. Quer ver?
    Partiu um pauzinho pequenino e com ele revolveu um pouco daquela "frouxa" que havia recolhido num cálice de vidro.
      - Está a ver? Ainda não faz bolhas. Quando fizer bolhas, que se fiquem durante algum tempo, então já é medronho. 'Tá a ver este ferro aqui, ao pé da chaminé? É o registo. Puxo ou empurro um bocadinho para que a saída do medronho seja sempre a mesma. É que o correr do medronho tem a ver com a temperatura do forno e não se pode deixar afogar. Isto é como uma criatura viva. Se lhe tapo o ar, o fogo morre afogado.
    E, como se falasse de um filho doente, carenciado de cuidados, continuava:
      - Quando 'tou no fabrico não saio daqui. Só p'ra ir buscar uma "bucha" ou fazer qualquer coisa assim rápido. Tenho que estar sempre a vigiar.
    Tomou na mão o que me pareceu um tubo, rolhado. Era de cana e continha um instrumento que mais parecia um termómetro. Mergulhou o tubo no líquido, que da serpentina corria lenta e regularmente para a vasilha, encheu-o e nele colocou o tal "termómetro".
      - 'Tá mesmo boa. 'Tá a sair aí com uns 20 graus, quase 21.
    Era um densímetro, um "pesa espíritos", que mergulha mais ou menos conforme a densidade do líquido e cuja escala indica a graduação alcoólica do medronho.
      - Agora faz uma aljofa boa!

      - Aljofa, Sr. José Joaquim?

      - Sim. As bolhas - explicou - quer provar?
    Um calorzinho saboroso espalhou-se-me pelo estômago, um delicado sabor adocicado, a medronho, chegou-me ao paladar e, ao respirar, um cheiro inebriante atravessou-me o nariz. Era a água-ardente de medronho, de sabor que há muito não experimentava e que já raramente reconheço nos restaurantes ou nos cafés quando o bebo no convívio entre amigos.
      - É que agora há pr'aí muita falcatrua! Até já se fabrica medronho sem medronho - brincou, jocoso - devia haver uma protecção ao fabricante e até uma fiscalização, para reabilitar o nome desta bebida. Olhe que eu já fui premiado numa feira de artesanato. Até tenho uma fotografia com aquela senhora que organiza a feira. Não a conhece?

quinta-feira, novembro 21, 2013

Memórias do blogue (VIII)





A aldeia abandonada do Talurdo


A aldeia abandonada do Talurdo, em 1994


Há na serra uma aldeia abandonada que, em Janeiro de 1994, visitei com uma turma da minha escola - O Talurdo.

Por essa ocasião publiquei algumas impressões que a visita me suscitou. São uma parte delas as que vos trago hoje nesta visitação às memórias do meu blogue.


  • (...)
    A primeira grande impressão é a do peso do silêncio, a impedir o pronunciar de uma palavra, a abafar na garganta o grito que nos apetece fazer sair, como forma de quebrar a estranha sensação de mistério que nos invade face aos testemunhos, estranhamente vivos, da presença humana. São as casas vazias onde se adivinha a mãe na cozinha a tratar do jantar, o pai no estábulo de volta dos animais que regressaram à aldeia, ao pôr-do-sol, recebidos pela gritaria alegre da criançada, a avó que à porta chama, ao longe, o neto retardatário, que ali ficou, junto à mina de água fresca ou na margem do ribeiro, absorto no saltitar da água - é que o cair da tarde cava uma tristeza cá dentro, no peito dum homenzinho que anseia tornar-se um homem!
    Não há ninguém.
    Quem teria construído e vivido nestas casas? Como e de que viviam as pessoas que nos esforçamos por imaginar a lavrar aqueles campos, a deslocar as dornas e pipas que ali estão, nos armazéns, a apanhar a lenha que aquecia aqueles fornos de pão, a pôr a albarda abandonada sobre o burrico que os levaria, serra acima, até à povoação mais próxima, para comprar o tecido para o vestido da mais nova, uns sapatos para o Zé, que já estão gastos, um arroz, que sempre batata e couve também cansa, e levar a farinha que o moleiro trabalhou e o medronho que o pai garante como o mais macio que alguma vez aquele alambique tenha produzido.
    (...)


segunda-feira, novembro 18, 2013

ELUCUBRAÇÃO






O preto é o vazio, o nada, a ausência de luz.

O branco é o todo, o cheio, completo, com todas as cores fundidas e sintetizadas em si e de tal maneira repleto que parece precisar desta abertura para escoar.

Olhando pelo buraquinho, vê-se que lá dentro o interior é branco; continua completo, como se nada escoasse de dentro de si ou como se, mesmo que escoasse, não perdesse nada do seu todo. 

A penumbra marca o contorno, em tons de cinza, do escuro ao claro, do claro ao escuro.

Entre o branco e o preto uma linha bem demarcada, uma fronteira que não deixa lugar a dúvidas.

Nós somos cinzentos, penumbrosos; nem brancos, nem pretos. Cheios de dúvidas e receios.


quinta-feira, novembro 14, 2013

A tertúlia mais PEQUENA do mundo















A tertúlia acontece no Quiosque Al-Mu'tamid, no largo com o mesmo nome, frente à Biblioteca, em Silves, de quinze em quinze dias, a uma quinta-feira, pelas 21h30.

Trata-se de uma extensão dos projetos de promoção da leitura, da Biblioteca Municipal de Silves, aqui com coordenação de Paulo Pires, técnico superior da Biblioteca.

O espaço é limitado a 20 pessoas.


As fotos acima documentam as duas primeiras sessões, mas não abarcam toda a sala, octogonal e com uma frente de balcão, pois o quiosque é utilizado como pequeno bar/café/pastelaria.


Esta noite terá lugar a terceira sessão.

Os interessados trazem as suas ideias, os seus textos, no fundo o que lhes aprouver, e a tertúlia funciona sem tema específico, ao sabor da corrente do pensamento e do diálogo.


Serei portador de dois contos da minha autoria e de um poema de Nuno Júdice, de extrema atualidade.



Ei-lo:



               A Pressão dos Mercados



             Emprestem-me a palavra para o poema; ou dêem-me
             sílabas a crédito, para que as ponha a render
             no mercado(…) É que as palavras estão caras.
             Folheio o dicionário em busca de palavras pequenas,
             as que custem menos a pagar, para que não exijam
             Reembolsos e as meter, ao desbarato, no fim do verso.
             O problema é que as rimas me irão custar o dobro,
             e por muito que corra os mercados o que me
             propõem está acima das minhas posses, sem
             recobro. E quando me vierem pedir o que tenho
             de pagar, a quantos por cento o terei de dar? Abro
             a carteira, esvazio os bolsos, vou às contas, e tudo
             vazio: símbolos, a zero; alegorias, esgotadas;
             metáforas, nem uma.
             A quem recorrer? Que fundo de emergência
             poética me irá salvar? Então, no fim, resta-me
             uma sílaba – o ar – ao menos com ela ninguém
             me impedirá de respirar.



 Nuno Júdice , “A Pressão dos Mercados”


Está feito o convite.

segunda-feira, novembro 11, 2013

Não me busques onde há luz







Não me busques no topo
das escadas onde
há luz
Procura-me no vão
das escadas onde
nos iluminaremos





quinta-feira, novembro 07, 2013

Património silvense (IX)




Ermida de Nossa Senhora dos Mártires





Conta a tradição ter sido mandada edificar por D.Sancho I, após a conquista de Silves, para aí sepultar os guerreiros cristãos mortos durante a luta, em lugar supostamente exterior às muralhas da medina, donde a designação de ermida.

Foi consagrada a Nossa Senhora dos Mártires.


Apresenta dois períodos reconstrutivos diferentes.



O manuelino, no séc. XVI, com um arco triunfal quebrado que dá acesso à capela-mor, coberta por abóbada artesoada, onde enquadra um retábulo seiscentista, protobarroco.



No exterior da capela-mor são manuelinos os merlões...





















... e as gárgulas, de aparência tenebrosa.








Outro período reconstrutivo data de 1779, pós-terramoto, que obrigou a refazer a fachada principal, com um pórtico de estilo barroco (rococó) muito semelhante ao da Porta do Sol na Sé Catedral.



O portal é ladeado por duas janelas de moldura tetralobada, encimado por um óculo de idêntico perfil.




Lamento a ausência de fotografias do interior, que não pude captar em tempo útil, agora que esta Igreja deixou de desempenhar as funções associadas às cerimonias funerárias.


Quero referir ainda a existência de um fecho de abóbada, exibindo um camaroeiro, emblema da Rainha D. Leonor, a quem pertencia a cidade de Silves.




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Bibliografia:

Radix - Ministério da Cultura (clique)

História de Silves em Medalhas - Igreja de Nossa Senhora dos Mártires (clique)

Manuel Castelo Ramos (Mestre em História de Arte), em texto escrito para figurar em quiosques multimédia, há cerca de duas décadas, e que integrou depois o "Guia da Cidade de Silves", página na Internet.



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Edições anteriores:








Património silvense (VIII) - As Casas Grandes



segunda-feira, novembro 04, 2013

Silves, ao tempo da civilização do al-Ândalus (IX)













Estátua de Al-Mu'tamid (frente e costas) 
na praça com o seu nome, em Silves.


Abu Bakr Ibn 'Ammar exerceu por pouco tempo o cargo de governador de Silves. 

O rei, Al-Mu'tamid, chama-o a Sevilha e nomeia-o seu vizir (cargo semelhante ao de primeiro ministro na atualidade).

O rei prossegue com a expansão do seu território, iniciada por seu pai e toma Córdova.


Começa a tornar-se inevitável o choque entre as duas civilizações, a cristã e a islâmica, ambas tentando alargar os seus territórios. As fronteiras são lugares de disputa permanente.
Afonso VI cercou Sevilha.

Conta a tradição que Ibn 'Ammar, conhecendo a vaidade do rei de Leão e Castela, o convidou a decidir o destino de Sevilha através de um confronto entre ele e o rei, frente a um tabuleiro de xadrez. O rei cristão perdeu.

Esta colaboração entre o rei de Sevilha e o seu vizir nem sempre foi tão benévola. Ibn 'Ammar tinha uma natureza muito peculiar, ambicioso e vaidoso, capaz do melhor e do pior, a seu proveito.

Conquistou Múrcia e quis garanti-la como sua possessão. Chegou mesmo a pedir empréstimo financeiro a Raimundo Berenguer II, Conde de Barcelona, deixando como fiança Raxid, filho de Al-Mu'tamid. Não pagou a fiança no prazo combinado e Raxid correu risco de vida.

Também ameaçou Valência, com quem o rei de Sevilha tinha um pacto de amizade e chegou a oferecer os seus serviços a Afonso VI. Este não aceitou. Ofereceu-os por sua vez ao rei de Saragoça, com sucesso.

Acontece que ficou prisioneiro ao serviço deste rei de Saragoça. Foi vendido em leilão, onde Al-Mu'tamid o comprou e o levou para Sevilha.

Aí prosseguiu com maledicências na corte que chegaram aos ouvidos do rei, que o mandou prender.

Mesmo na prisão escreveu poemas contra o rei que, um dia, entrou nos calabouços e, no meio de acesa disputa não se conteve e matou-o.

Foi sepultado sob uma torre do palácio real.


Nos anos que se seguem a situação militar complica-se, sob pressão de Afonso VI, e Al-Mu'tamid tenta disfarçar as exigências do rei de Leão e Castela sobre os territórios de Córdova, oferecendo-os como dote de sua filha Zaida, que casa com o rei cristão.



A situação irá complicar-se ainda mais e trará consequências sobre o destino de Silves.



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Garcia DominguesHistória Luso-Árabe, edição do Centro de Estudos Luso-Árabes de Silves, 2010
António Borges CoelhoPortugal na Espanha Árabe, vol. 2 - Editorial Caminho

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Se estiver interessado na leitura dos episódios anteriores, siga os links abaixo:



Silves, ao tempo da civilização do al-Ândalus (I)

Silves, ao tempo da civilização do al-Ândalus (II)

Silves, ao tempo da civilização do al-Ândalus (III)

Silves, ao tempo da civilização do al-Ândalus (IV)

Silves, ao tempo da civilização do al-Ândalus (V)

Silves, ao tempo da civilização do al-Ândalus (VI)

Silves, ao tempo da civilização do al-Ândalus (VII)

Silves, ao tempo da civilização do al-Ândalus (VIII)