sexta-feira, dezembro 23, 2005

Boas Festas!

Vela acesa, Dezembro 2005, © António Baeta Oliveira
Esta foto foi idealizada propositadamente para este post.

No 25º dia do mês de Kishev, que no calendário judeu (móvel) corresponde aos meses de Novembro/Dezembro, comemora-se o Chanukkah. Este ano, esta festividade tem início ao anoitecer de 25 de Dezembro. A habitual proximidade da data com o Natal e o prolongado convívio social dos judeus com o mundo ocidental, dito cristão, tem conduzido a alguma assimilação de hábitos e costumes.

Aproveito o ensejo para endereçar a todos os meus amigos, cristãos e judeus, bem como a todos os outros que aqui me visitam, os meus votos de Boas Festas.
Neste link (basta clicar) tenho um postal à vossa espera.

quarta-feira, dezembro 21, 2005

É tempo de Solstício

Stonehenge, Primavera 2002,© António Baeta Oliveira

Hoje (21), às 18h36 para as coordenadas de Silves, o Sol estará sobre o Trópico de Capricórnio. Esta será a maior noite do ano e um novo ciclo solar vai iniciar-se. É tempo do sol da meia noite nos países bem mais a Norte.
O Solstício de Inverno é um fenómeno que a humanidade acompanha desde sempre; era uma data mágica e sagrada entre os primeiros povos, que deixaram testemunhos da sua atenta observação do movimento celeste, como em Stonehenge, na fotografia acima, que ali tirei, ao cair da tarde, pela Primavera de 2002.
O solstício não ocorre numa data fixa (creio que pode oscilar entre 19 e 25) e sempre foi motivo de festejos religiosos, que o Império Romano assimilou e o cristianismo, herdeiro desse Império, adoptou. As antigas comemorações do Solstício de Verão estão ainda hoje relacionadas com os Santos Populares, particularmente com o São João, e o Solstício de Inverno serviu à marcação da data do nascimento de Cristo e ao início do novo ano.
Um novo ano vai começar.

segunda-feira, dezembro 19, 2005

Deve ser árabe, sim

  • Deve ser árabe, sim

    O coração deve ter passeado
    aqui, no mesmo espaço
    ou outro tempo tão igualmente
    azul: as arcadas de sol
    e pedra branca e uma fonte
    final

    contra um fundo de renda
    toda branca, a chaminé
    sem fumo. Mas lume pelo mar
    de laranjeiras
    e um perfume de flor
    de bandolim

(E a conclusão: que sim,
deve ser isso
que o título entrelaça
com o fim)

Ana Luísa Amaral
E Muitos os Caminhos
Poetas de Letras, Porto 1995
ALGARVE todo o mar
(Colectânea)
Dom Quixote, Lisboa 2005

quinta-feira, dezembro 15, 2005

Um Conto (XIX)

  • Uma reacção rápida é vital

    Paulo acabava de recobrar a sua consciência. Mantivera-se inanimado, por três dias e três noites, na sequência de um traumatismo craniano. O médico disse ter sido causado pelo que lhe pareceu ser o resultado de um pontapé, desferido por uma bota militar, de biqueira reforçada a aço.

    David sentia-se delirante, fremente, de nervos à flor da pele, depois de um dia inteiro frente à consola de jogos. Era exímio no domínio dos golpes de defesa e ataque das artes marciais, no manejo dos pequenos botões com que dirigia o seu herói face a qualquer inimigo, «venha donde vier!», na sua expressão.

    Paulo, com alguma dificuldade, conseguiu recordar que se dirigia ao encontro de um amigo. Ao aproximar-se da esquina de uma rua pareceu-lhe ouvir os seus passos, que se aproximavam.

    David, frente ao espelho, simulou alguns golpes, antes de sair a caminho do ginásio. O treino permitia-lhe obter uma reacção rápida; o que é vital.

    Paulo delineou uma brincadeira enquanto escutava os passos, cada vez mais próximos. Adivinhava já a surpresa, o sobressalto, estampados no rosto do seu amigo. Aguardou que ele se aproximasse da esquina e, de repente, saltou-lhe em frente, numa atitude de ataque marcial, como nos filmes chineses ou japoneses.
    Não conseguia lembrar-se de mais nada.


quarta-feira, dezembro 14, 2005

Tribunal Administrativo considera ilegal a decisão da Câmara

Entrada pelo jardim do CELAS, Silves, Outubro 2004, © António Baeta Oliveira
CELAS (Centro de Estudos Luso-Árabes de Silves) - entrada pelo lado do jardim

Para se inteirar do que aqui refiro em título, proponho que antes leia o que escrevi, neste mesmo blog, em Há polémica a propósito do CELAS, a 13 de Abril de 2005. (Basta clicar na expressão sublinhada, atrás)

O CELAS apresentou, ao tempo, uma providência cautelar ao Tribunal Administrativo. Este Tribunal, depois de ouvidos diferentes testemunhos, veio agora revelar a sua decisão, favorável às pretensões daquela Associação. A Câmara Municipal deve, assim, entregar a chave do edifício à direcção do CELAS, permitindo que esta associação possa desenvolver as actividades que tenha programado ou venha a programar.

Faço votos para que a polémica se fique por aqui, sem insistência em recursos jurídicos que só prolongarão o estado de indefinição em que se viveu até agora, sem proveito para as partes litigantes e cidadãos em geral e que, de parte a parte, os seus responsáveis saibam, depois do litígio, encontrar uma aproximação que seja benéfica ao desenvolvimento cultural da cidade.

terça-feira, dezembro 13, 2005

Arte Islâmica na WEB


© www.discoverislamicart.org

Desde o dia 9 que o site indicado acima se encontra acessível, integrando o projecto Museum With No Frontiers, que conta com o apoio de 14 países da bacia do Mediterrâneo e da União Europeia: Alemanha, Argélia, Autoridade Palestiniana, Egipto, Espanha, Itália, Jordânia, Marrocos, Portugal, Reino Unido, Síria, Suécia, Tunísia e Turquia.
Trata-se de um museu virtual, que reúne várias colecções daqueles países e onde Portugal conta com 85 entradas, das quais, onze, se referem a Silves. A base de dados (Database) é bem documentada e minuciosa e as referências portuguesas podem ser lidas na nossa própria língua.

Aconselho, vivamente, uma visita.

segunda-feira, dezembro 12, 2005

A Sombra regressou da sombra

Regressa da sombra da minha lista de Blogs... de homenagem, onde figurava desde o início do já distante ano de 2004, para a minha lista de Blogs... de leitura diária, um blog com cujo autor fui (fomos) forjando uma relação de amizade construída no dia após dia do que sobre a vida nos é dado comentar - A Sombra.

sexta-feira, dezembro 09, 2005

Um Cont(inh)o (X)

Aí está um novo microconto (cerca de 50 caracteres), com votos de um bom fim-de-semana:


  • Ele usava a mesma violência a que se habituara nos jogos de vídeo.

quarta-feira, dezembro 07, 2005

O gosto com que a gente gosta

Arco da torre albarrã virada a Nascente, Silves, Dezembro 2005, © António Baeta Oliveira

Que fascínio exerce em mim o arco daquela torre?
Ecos de contos de fadas, reminiscências da infância ou da adolescência, atracção, receio ou curiosidade por uma passagem para o outro lado, evocação de algum exotismo oriental, conforto estético na perfeição da curva ou no equilíbrio das dimensões, culto e apreço pela história, estima pelas heranças do passado, pelo património?
Talvez tudo isto e cada uma destas coisas ou outras coisas ainda.
Há um percurso pessoal, de vivências, de afectos, de aprendizagens, que nos molda o gosto. E foi também esse gosto que determinou a minha opção por esta fotografia a sépia, mais do que a preto e branco ou a cor. Gostos dificilmente se explicam, daí a proverbial expressão: - «gostos não se discutem».

E vocês, gostam? Acredito que sim, mas não certamente pelas minhas razões, nem com o mesmo gosto com que eu gosto.

segunda-feira, dezembro 05, 2005

Como, sem os amigos?!

No Encontro BlogAlgarve II quase não se falou de blogs.
O que nos motiva nestes encontros, creio eu, é conhecer os outros para além do blog; é confirmar as afinidades que descortinámos por detrás da escrita. Já assim fiz amigos, bons amigos, nestes "contactos de 3º grau".
Neste último encontro houve troca de prendas, por sorteio. O acaso determinou que me viesse parar às mãos um livro de poesia. Foi dele que retirei este poema:

  • Os Amigos

    Voltar ali onde
    A verde rebentação da vaga
    A espuma o nevoeiro o horizonte a praia
    Guardam intacta a impetuosa
    Juventude antiga __
    Mas como sem os amigos
    Sem a partilha o abraço a comunhão
    Respirar o cheiro a alga da maresia
    E colher a estrela do mar em minha mão

Sophia de Mello Breyner Andresen
MUSA
Editorial Caminho, Lisboa 2004

sexta-feira, dezembro 02, 2005

Encontro BlogAlgarve (II)

Encontro BlogAlgarve II, Dezembro 2005, © António Baeta Oliveira

Aqui fica o registo fotográfico de todos os participantes deste 2º Encontro de bloggers no Algarve. Ia escrever do Algarve, mas emendei a tempo, pois juntaram-se-nos amigos de Lisboa e Almodôvar.
O Encontro teve lugar em Loulé, no restaurante A Moagem e, foi um agradável convívio.
Remeto-vos para a página oficial do Encontro BlogAlgarve II.

quarta-feira, novembro 30, 2005

Património cultural comum

Fragmento de Lintel, séc. XIII, Exposição «A Arte da Madeira», Silves, Novembro 2005

A fotografia reproduz um fragmento de lintel, em madeira de cedro. Provém do Museu Batha, em Fez, e data do período almoada, no final do séc. XIII.
Está exposto em Silves, até 10 de Fevereiro, no Museu Municipal de Arqueologia, integrando a exposição A Arte da Madeira em Marrocos: saber e tradição milenar, uma produção conjunta da Câmara de Silves e do Ministério da Cultura de Marrocos, com a colaboração de Faro, Capital Nacional da Cultura 2005.


O período almoada marca o fim de uma civilização comum aos povos que habitavam o Sul do que é hoje o nosso território, o Sul do que hoje se designa por Espanha e o que hoje constitui o Reino de Marrocos.
Este belo fragmento de madeira poderia ter sido talhado em Silves com os mesmos caracteres cúficos e semelhante decoração floral. Poderia até ter sido trabalhado pelo mesmo artista ou artistas que se ocuparam da sua concepção e do seu talhe, caso a sua encomenda tivesse sido proposta por um habitante desta cidade. O que atrás adiantei, por mera suposição, não seria de todo inverosímil, dada a proximidade das relações. O início do poder almoada no al-Ândalus deve-se a Ibn Qasi, senhor de Silves, que procurou o apoio almoada na sua luta contra os almorávidas, tribo cujo poder os antecedeu.
O séc. XIII assinala o desmoronar desse poder no Norte de África e a queda, em Silves, da civilização muçulmana, às mãos dos bárbaros portugueses do Norte.

O fragmento de madeira a que me venho referindo, de decoração requintada, regista o declínio cultural de Silves, à época uma cidade de referência na arquitectura, na matemática, na história, na literatura, na poesia; um passado histórico de que muitos silvenses se orgulham, mas para o qual ainda não se atingiu paralelo cultural neste séc. XXI, já lá vão mais de oitocentos anos.

segunda-feira, novembro 28, 2005

O Funicular

O funicular, Porto, Novembro 2005, © António Baeta Oliveira

Estou de regresso.
Vivi uma novidade nesta minha deslocação ao Porto: a descida do funicular sobre a Ponte de Dom Luís e a Ribeira. Gostei da cabine envidraçada, embora o vidro, sujo, me tivesse prejudicado a fotografia. O Sol também não ajudou, mas a este propósito não tenho a quem me queixar.

quarta-feira, novembro 23, 2005

Um Conto (XVIII)

  • Nesse bairro não, por favor!

    Mário e Eduardo saíram para jantar. A arquitectura, a decoração, a ambiência, o serviço, a ementa, tudo era muito sofisticado. O seu diálogo também: sobre o que liam, sobre o que viam, de teatro, de dança, de música, de cinema, de artes plásticas.
    Amigos, desde o liceu, viviam agora em cidades diferentes, mas encontravam-se, algumas vezes por ano, em congressos da sua especialidade comum, em cidades diversas do mundo, como agora, em Seattle.
    Já no exterior do restaurante, no longo e feericamente iluminado boulevard, entre lojas que ostentavam as mais conceituadas marcas comerciais, passeavam a pé, em plena noite, sem o menor sinal de insegurança, apreensão tão presente, hoje em dia, na noite de qualquer média ou grande cidade do mundo.
    Conversavam sobre os seus projectos de investigação e das dificuldades de financiamento que se faziam sentir em Portugal, apesar do nosso atraso nessa área, com a consequente emigração de alguns dos nossos melhores cientistas.
    Caminhavam, distraidamente, tão envolvidos iam na sua discussão, aproximando-se de um bairro com belíssimas vivendas, de um urbanismo arrojado, de extremo bom gosto e, com certeza, altamente dispendioso.
    Quando se deu conta do local, Eduardo estacou. No seu olhar e na sua atitude, Mário sentiu algo de estranho.


      - «Que se passa?», perguntou Mário.
      - «Não vês onde estamos?!»
      - «Vejo, perfeitamente, num bairro rico, com óptimas vivendas.»
      - «Eu não avanço mais. Voltemos para trás.», propôs Eduardo, num tom implorativo, algo desesperado.
      - «Mas, Eduardo, que se passa contigo? Aqui, a segurança, apesar de discreta, é altamente eficiente.», esclareceu Mário, «Trata-se de um bairro de brancos, de brancos ricos.»
      - «Pois é isso mesmo que me atormenta.», replicou Eduardo, «Julgas que esses brancos, seguramente instalados nas suas casas, nos seus guetos voluntários, não receiam, sobremaneira, tudo o que lhes é exterior?! Nem precisam de sujar as suas mãos e a sua consciência. Têm os seus seguranças para tratar do assunto, e eles adoram fazer uso da sua profissão.»
      - «Por isso mesmo, amigo. Por isso mesmo não há problema.»
      - «Mas nós somos pretos, Mário, e os gorilas batem primeiro e só depois perguntam quem somos e que fazemos aqui. Falo por experiência própria. Nesse bairro não, por favor!»

P.S.
Este conto sai um pouco mais cedo do que o habitual porque me vou ausentar de novo, por alguns dias, e desejo manter-vos na minha companhia.

domingo, novembro 20, 2005

Dia Mundial em Memória das Vítimas da Estrada

© Diário de Notícias
© Diário de Notícias

O Aldo é um dos entrevistados de hoje no Diário de Notícias, em função da comemoração do Dia Mundial em Memória das Vítimas da Estrada.
Foi meu aluno e hoje é meu amigo. Uma das suas preocupações reside na dificuldade em circular com segurança na cidade; até mesmo as ruas que recentemente foram sujeitas à intervenção da POLIS não contemplam ainda as alterações que se propõem, visando a segurança da circulação dos que têm problemas com a sua mobilidade. As únicas intervenções desse tipo que registo em Silves, são as que se verificam às entradas das farmácias, por norma de obrigatoriedade, e uma ou outra situação de acesso a novos espaços, que primam pela excepção e não pela regra.
Que este Dia Mundial, que a ONU instituiu este ano pela primeira vez, sirva de alerta a quem tem o poder e os meios para alterar estas situações.
Por respeito pelos idosos e por todos os outros que sofrem no dia-a-dia a periculosidade que têm de enfrentar de cada vez que saem à rua, num desgaste diário das suas energias e do seu estado de saúde, um apelo a quem tem o poder de influir nas decisões. A POLIS, que publicita nos locais da sua intervenção, "O futuro começa aqui!", pode dar um imediato exemplo de que o futuro passa por uma atitude que vá ao encontro dos que se arriscam todos os dias, como o Aldo.

sexta-feira, novembro 18, 2005

Um Cont(inh)o (IX)

Um pouco ao sabor das reflexões suscitadas pelos acontecimentos das últimas semanas, aqui está um novo microconto (cerca de 50 caracteres):


  • À exacerbação da contrariedade, sobrevinha-lhe a violência.

quarta-feira, novembro 16, 2005

A nossa vida não pode continuar assim

Os sinais acumulam-se há muito; lá como cá.

Os bairros onde os pais só voltam para dormir, onde durante o dia só ficam os velhos, os desempregados, os jovens depois da escola, os jovens que já nem vão à escola. Os locais onde se cresce longe dos pais, entre crianças e adolescentes da mesma idade, que se confrontam com a sua diferença de cada vez que saem do bairro, e que ali se remetem, em aprendizagens de rua, de espertezas e sobrevivência, cujos valores são os do grupo, do pequeno grupo que aprendeu por si. Nestes bairros, como nos outros, há reprodução social.

Como aqui transcrevi, outro dia, a propósito do filme Crash:

«Movendo-nos à velocidade da vida, estamos prestes a colidir uns com os outros.»

Há que impor outra velocidade à vida.
Há que saber como, antes que seja tarde.

segunda-feira, novembro 14, 2005

De regresso a casa

Évora, Catedral, Novembro 2005, © António Baeta Oliveira
Mais fotos de Évora

De Évora, trago-vos esta foto: são as torres da Sé Catedral, pintadas da cor do Sol ao entardecer.
Trar-vos-ia a satisfação que senti ao voltar aqui a passear, lentamente, fazendo registos para memória futura, se tal fosse possível transportar. Dir-vos-ia do prazer do regresso ao contacto com o frio, que se fez sentir nas noites eborenses, se o pudesse descrever. Contar-vos-ia, não fora a discrição que se deve às relações de amizade pessoais, como é bom estar com velhos amigos e familiares, partilhando lembranças e fruindo do calor da amizade.
Do que não vos trouxe, não vos disse ou não vos contei, todos nós sabemos bem, felizmente, com o devido ajuste à nossa natureza e ao nosso percurso pessoal.

Testemunharei, tão só, que um dia quero voltar.

quarta-feira, novembro 09, 2005

Ausente por alguns dias

© António Baeta Oliveira

Vou estar ausente, por estas bandas, revendo colegas e amigos de há muitos anos.
Até breve!

segunda-feira, novembro 07, 2005

Sacode as nuvens...

A 6 de Novembro de 1919 nasceu Sophia.
Não tive oportunidade de aqui deixar, ontem, a singela homenagem que tinha programado. Faço-o hoje.

  • Sacode as nuvens...

    Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos,
    Sacode as aves que te levam o olhar,
    Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.

    Porque eu cheguei e é tempo de me veres,
    Mesmo que os meus gestos te trespassem
    De solidão e tu caias em poeira,
    Mesmo que a minha voz queime o ar que tu respiras
    E os teus olhos nunca mais possam olhar.

Sophia de Mello Breyner Andresen
Cem poemas de Sophia
Editorial Caminho, Lisboa 2004

quinta-feira, novembro 03, 2005

Um Conto (XVII)

  • O meu amigo Jojó

    O Jojó morava do outro lado da rua, numa casinha térrea de barras azuis na porta e nas janelas.
    Foi meu colega na pré-primária. Logo pela manhã descia um pouco a rua, colocava-se frente à minha porta e aguardava que eu descesse e o acompanhasse até à escola. Eu cumpria escrupulosamente essa rotina. Lembro-me de que uma vez tinha descido primeiro do que ele e fui esperá-lo. Ele não gostou que o tivesse feito. Chegou mesmo a dizer-me: - «Não é assim que se faz!».

    Seguíamos juntos. Raramente conversávamos. Ele nunca assumia a iniciativa e eu obtinha invariavelmente respostas assertivas, breves e secas. Mas sei que ele gostava de mim. Considerava-me o seu melhor amigo; o seu amigo de confiança. Eu também sentia muito carinho e respeito pelo Jojó.

    Na escola, refugiava-se a um canto e observava-nos, disfarçadamente, pois sabia que o seu olhar desencadeava respostas de alguma agressividade, com caretas, arremesso de objectos ou confrontação física.

    O Jojó era diferente dos outros.

    Como e quando teria ele descoberto essa diferença? Que conjecturas retirava das atitudes dos colegas?

    Na escola primária a situação agravou-se, nomeadamente perante os colegas mais velhos, a quem eu próprio não me atrevia a opor-me ou a chamar a atenção. Também passou a ficar na escola, por um tempo suplementar, e perdeu a minha companhia no regresso a casa.
    Quando passei ao liceu, ele ainda se mantinha na outra escola. Mais tarde, na adolescência, quando se aproximava de mim, o que só acontecia se eu estivesse sozinho, passou a perguntar-me o nome desta ou daqueloutra das minhas colegas e um dia mostrou-me, às escondidas, uma carta que tinha escrito para a Margarida. Na longa folha de papel, de linhas azuis, além do nome dela - Margarida - tinha preenchido todo a carta com a mesma frase, sempre repetida - Eu gosto de ti.

    Com o passar dos anos e quando, de férias, regressava a casa, observava que o Jojó não era já o segregado ou o alvo da agressividade gratuita dos outros; antes lhes era absolutamente indiferente.

    Vi-o ontem, na Feira. Olhou-me quando o cumprimentei, mas nos seus olhos só vi ausência. À indiferença dos outros o Jojó foi ficando indiferente aos outros e nem já o calor da ira, da reacção à maldade, o habita. Ninguém sequer já proclama quando por ele passa: - «Olha o mongolóide!»
    Até me apeteceu dizê-lo, de raiva, a ver se reagia, se reactivava de dentro daquele invólucro, pelo menos um resto do Jojó que eu conheci.

    Não o fiz. Sei, cá no fundo, que nessa indiferença viverá o resto dos seus dias.


quarta-feira, novembro 02, 2005

عيد الفطر - 'idu al-Fitr

© (não identificado)

Terminou o Ramadão (رمضان).
Os muçulmanos comemoram amanhã uma das suas maiores festividades, o 'Aidu al-Fitr (عيد الفطر), no 1º dia do mês de Xaual (شوال).
Agradecem as bençãos que lhes foram concedidas durante o Ramadão.

A todos os meus amigos muçulmanos, os meus votos de um feliz dia.

Nota:
Amanhã, no Local & Blogal, é dia de conto.

terça-feira, novembro 01, 2005

O Terramoto de Lisboa

Passaram-se 250 anos.
Gravuras e textos sobre o Terramoto de 1755 ocuparam e continuarão a ocupar por mais alguns dias os orgãos de comunicação do nosso país. Aqui nos blogs irá ocorrer situação semelhante. Há importantes lançamentos de livros sobre o tema, tanto em Lisboa como no Algarve, com abordagens científicas e literárias de elevado interesse.
A minha cidade, Silves, foi das mais afectadas e diz-se que teriam ficado de pé "umas 20 casas".

Mais do que os factos relacionados com a sismologia e a destruição, gostaria de chamar a vossa atenção para a repercussão internacional que o Terramoto suscitou e que se relaciona com o Iluminismo, essa corrente de pensamento, de ordem científica e filosófica, de carácter racional, representada em Portugal pelos chamados estrangeirados e, particularmente, pela figura mais eminente da época, o Marquês de Pombal.
As explicações racionais do fenómeno colidiram fortemente com a mentalidade religiosa da época.
Voltaire escreveu um poema sobre o Terramoto, questionando-se sobre a Providência divina, assunto que voltou a abordar num dos seus mais famosos romances, Candide. Deixo um link para o Poema sobre o desastre de Lisboa (em francês), agora traduzido por Vasco Graça Moura e incluído na publicação a apresentar na capital, por esta ocasião, pela editora Alêtheia.
Permitam-me que vos deixe ainda o link de um ficheiro do Word, com uma tese, assinada por Robert K. Reeves e apresentada no Dickinson College - The Lisbon Earthquake of 1755 (em inglês) - sobre o confronto entre a Igreja e o Iluminismo, com várias imagens sobre a cidade de Lisboa, ao tempo, de onde retirei a ilustração que encabeça este post.

sexta-feira, outubro 28, 2005

Pedro e Inês


Olga Roriz e Companhia Nacional de Bailado

Foi um final de tarde inesquecível no Teatro Municipal de Faro.
Deslumbrei-me com a cenografia, o desenho de luzes, até o guarda-roupa, mas a coreografia, essa, foi de uma beleza indescritível, como é possível adivinhar na expressividade do par da imagem acima, particularmente quando os dançarinos tocam a água, esse símbolo da vida e da regeneração.
Passei por momentos de elevada fruição estética, nomeadamente na cena do assassinato, na expressão coreografada da violência.

Olga Roriz e toda a equipa que dirigiu, fizeram-me sentir, intensamente, através da linguagem plástica da dança, o terrível drama de Pedro e Inês.
Obrigado!

quinta-feira, outubro 27, 2005

Um Cont(inh)o (VIII)

Aí está um novo microconto (cerca de 50 caracteres), a corroborar a tendência dos posts da semana, mas antecipando-se à sexta-feira:


  • Um dia veio a entender que os eleitores não queriam como ele quer.

quarta-feira, outubro 26, 2005

Ainda a propósito do novo ciclo autárquico

(Na sequência do post da passada segunda-feira)

Não duvido de que o Salão Nobre dos Paços do Concelho, onde decorreu a cerimónia da tomada de posse, estivesse cheio de gente.
Os que compareceram certamente souberam da cerimónia; outros ainda, terão sabido e não compareceram; muitos outros não chegaram a saber.
O que pretendia, nesse meu texto, era chamar a atenção para a necessidade de uma ampla divulgação, como acto responsável de informar e de formar para a cidadania, para a cultura democrática.

Os que lá estiveram tinham os seus interesses e creio que todos, sem excepção, temos os nossos próprios interesses na procura de soluções que satisfaçam as nossas necessidades e as da comunidade onde vivemos.
Os que comparecem a uma Assembleia Municipal também têm os seus interesses em ver satisfeitas necessidades pessoais e colectivas.
Mas para além dos interesses há as expectativas e, seguramente, os que estiveram na tomada de posse tinham expectativas mais elevadas do que as que se geram perante uma Assembleia Municipal, que não suscita, salvo em raras ocasiões, a presença de tanto público.

É por tudo isso que reafirmo o que aqui disse em post de 20 de Setembro: Não estou interessado em quem detém o poder - «o poder sempre corrompe» - mas antes em quem o fiscaliza, em quem se lhe opõe, contrapondo uma outra forma de encarar as soluções políticas...

A oposição não pode desaparecer do contacto com as populações terminado o acto eleitoral e regressar em situações esporádicas, sem continuidade, ao longo de quatro anos, esperando fazer-se ouvir, então, quando é fácil denunciar e prometer, na proximidade de um novo acto eleitoral.

A oposição tem responsabilidades perante os seus eleitores (8535 contra 7395); eles são a maioria dos que compareceram às urnas. Confirme, clicando aqui.
Há que estar connosco, cidadãos, todas as semanas, porque todas as semanas se votam resoluções em reuniões da Câmara e nós temos o direito de ser informados de como se votou e por que se votou de determinada forma. Há que trazer para o domínio público e para a discussão pública as actas das reuniões onde, em nosso nome, se decide sobre a administração do concelho.
Há que divulgar, mais profusamente, as sessões da Assembleia Municipal e, na sequência, as suas actas.
Há que fazer viver a cidadania.

          - «Mas isso não é habitual. Não se faz em parte nenhuma.»

Pois é!

terça-feira, outubro 25, 2005


Lembrando Picasso na data em que nasceu, em 1881.

CRASH


(clique)
    «Movendo-nos à velocidade da vida, estamos prestes a colidir uns com os outros.»
Trata-se de um filme que alerta para a urgência da prática da tolerância numa sociedade multicultural.

segunda-feira, outubro 24, 2005

Novo ciclo autárquico

Um novo ciclo autárquico teve o seu início, na passada sexta-feira, com a tomada de posse de novos e velhos autarcas à Assembleia e Câmara municipais.
O "pontapé de saída" deixou a desejar.
Mais uma vez a grande maioria dos cidadãos não tomou conhecimento e ficou à margem deste acto institucional; não só porque se alheia, porque alheia habitualmente à prática da cidadania, mas também porque os novos e velhos autarcas não se incomodam com o facto.
Que esforços de divulgação foram feitos pela Assembleia ou pela Câmara, para além dos editais que a lei exige, mas que o comum dos cidadãos nunca viu e nem sabe em que local ou locais se afixam?
Será que um acto desta importância, no nosso país, que cada vez mais se afasta da participação política, não merece uma divulgação do mesmo nível que se atribui a qualquer actividade cultural, desportiva ou meramente lúdica, com cartazes, painéis, conferências ou comunicados de imprensa?

Os novos autarcas dirão que ainda não tinham assumido os seus papéis, como se não estivessem previamente enquadrados numa estrutura partidária e se não se tivessem todos proposto actuar de forma diferente, tendo em vista os cidadãos, pelos quais foram eleitos e aos quais se propõem servir.

          - «Mas não é habitual. Não se faz em parte nenhuma.»

Pois é!

quinta-feira, outubro 20, 2005

Um Conto (XVI)

  • Um homem de ideias arrumadas

    O senhor Alfredo era uma figura respeitável. Na pequena cidade onde vivia, era estimado e cumprimentado com respeito e afeição pelas muitas pessoas com quem se cruzava.

    Aconteceu que, a partir de determinado momento da sua vida, começou a sentir que as pessoas passaram a comportar-se para com ele de maneira diferente da habitual. Atrever-me-ia a dizer, de duas maneiras diferentes da habitual.
    Numa delas, a mais frequente, passou a sentir-se estranha e incomodativamente observado; as pessoas olhavam-no com uma insistência e uma curiosidade exageradas.
    Na outra maneira, menos frequente, mas que sucedia de forma regular, as pessoas pareciam receá-lo; passavam por ele desviando o olhar, apressadas, ou fugiam em sentido contrário, como que amedrontadas. Por vezes ia dar com elas escondidas, ao virar da esquina, paradas, a observá-lo. Também, se subitamente parava e desviava a cabeça, para olhar para trás, lá estavam elas e os seus olhares perscrutadores.
    Nesse tal momento da sua vida, passara a impor-se-lhe, com regularidade, uma necessidade inadiável de arrumar as ideias. Quando tal acontecia não saía de casa; receava chocar com as pessoas, com os carros, com os objectos. Mas ficar em casa sem ler, sem escrever, sem ver televisão, sentado no sofá sem exercício, por horas, enquanto punha a cabeça a arrumar as ideias, era absolutamente insuportável.

    Fora a partir do dia em que assumira a sua decisão, que tudo se alterou no comportamento das pessoas para consigo.

    A partir de então, quando necessitava de arrumar as ideias, não mais punha a cabeça ao lado, sobre a mesa. Pegava nela, metia-a debaixo do braço, os olhos bem abertos para não andar aos tombos, e saía para a rua, a passear.


quarta-feira, outubro 19, 2005

Autoria feminina no séc. XVII

O fascículo nº 32 da História e Antologia da Literatura Portuguesa, numa edição da Fundação Calouste Gulbenkian, é dedicado à literatura de autoria feminina. Além da já conhecida Sóror Mariana Alcoforado, tive assim oportunidade de me inteirar da existência de outras mulheres da literatura de conventos, como Sóror Madalena da Glória, Sóror Clara do Santíssimo Sacramento ou Sóror Maria do Céu, uma das quais assina, por vezes, com o criptónimo Marina Clemência e uma outra com um criptónimo que é o anagrama do seu próprio nome, Leonarda Gil da Gama.
Quer dar-se ao trabalho de descobrir quais são elas?

De Sóror Madalena da Glória e de uma das suas histórias, a Terceira História, transcrevo um poema, em forma de epitáfio, ...na sepultura da memória, em que a minha dor escreveu...



  • É de uma esperança morta
    Esta memória defunta:
    A causa não se pergunta,
    Porque só à dor importa.

P.S.
Amanhã será tempo da minha própria ficção: um conto, à quinta-feira, na trilha do nonsense, sobre um homem com ideias arrumadas.

terça-feira, outubro 18, 2005

Ataíde Oliveira

Contrasenso, por via informática e Voz de Loulé, em papel, evocam, por iniciativa de Hélder F. Raimundo e pela escrita de Luís Guerreiro, Ataíde Oliveira, Benemérito do Algarve, no dizer de Leite de Vasconcelos.

Francisco Xavier d'Athaíde Oliveira nasceu no Algôs e residiu em Silves na casa da Rua da Azoia que ostenta uma placa comemorativa em seu nome e que é, actualmente, residência da família Penisga.
Este ilustre filho do concelho de Silves, sobre cuja obra vos podeis documentar em Contrasenso, não tem merecido a devida atenção das sucessivas administrações do nosso concelho.
O seu nome figura numa rua do Algôs, mas ainda não consta na toponímia da cidade sede do seu município, como felizmente sucede noutros sedes de municípios do Algarve, nomeadamente Faro e Loulé.

Mais do que a mera referência ao seu nome, importaria a reedição de algumas das suas obras, particularmente as suas lendas e contos do Algarve e as monografias de Algôs e São Bartolomeu de Messines.

Deixo esta chamada de atenção para tão importante figura de Silves e do Algarve e relembro ainda uma intervenção de Maria Aliete Galhoz, do Centro de Tradições Populares Prof. Doutor Viegas Guerreiro, da Faculdade de Letras de Lisboa e Isabel Cardigos, do Centro de Estudos Ataíde Oliveira, da Universidade do Algarve, por ocasião das V Jornadas de Silves, uma organização da AEDPHS (Associação de Estudos e Defesa do Património Histórico Cultural de Silves), publicada nas ACTAS desse encontro (30 e 31 de Outubro de 1999), que se debruçou sobre a importância da sua obra e comporta variada informação biliográfica.

segunda-feira, outubro 17, 2005

Não posso adiar o coração

Em 17 de Outubro de 1924 nascia, em Faro, António Ramos Rosa.

Hoje, em jeito de homenagem, acrescento à minha compilação (ao fundo desta mesma página), o poema que, muito provavelmente, é o mais conhecido e divulgado de toda a sua vasta obra.

  • Não posso adiar o amor para outro século

    Não posso adiar o amor para outro século
    não posso
    ainda que o grito sufoque na garganta
    ainda que o ódio estale e crepite e arda
    sob montanhas cinzentas
    e montanhas cinzentas

    Não posso adiar este abraço
    que é uma arma de dois gumes
    amor e ódio

    Não posso adiar
    ainda que a noite pese séculos sobre as costas
    e a aurora indecisa demore
    não posso adiar para outro século a minha vida
    nem o meu amor
    nem o meu grito de libertação

    Não posso adiar o coração

António Ramos Rosa
Viagem através duma nebulosa (1960)
Antologia poética
Publicações Dom Quixote, Lisboa 2001

sábado, outubro 15, 2005

O voo das cegonhas negras


Flying over Natura 2000

O mapa mostra a posição da cegonha negra, de nome Espartero, cujo voo migratório se iniciou em Salamanca, passou a Portugal (após muita hesitação) e seguiu junto à fronteira para lá de Castelo Branco. Cruzou o Tejo regressando a Espanha, que percorreu em direcção a Marrocos sobre o Estreito de Gibraltar. Sobrevoou o Saara por Marrocos, Argélia e Mauritânia, inflectindo então em direcção ao Mali, atravessando o Níger, o Nordeste da Nigéria e o Chad, onde se encontra agora, na localização que o mapa regista.

Além do Espartero, macho, encontra-se também sob observação a Esperanza, fêmea, que partindo de Ávila se dirigiu para o Senegal.

Pode acompanhar estes voos, que me foram sugeridos pela World Wildlife Fund espanhola (wwf.es), clicando no mapa acima, disponibilizado por "Flying Over Natura 2000", um projecto da Comunidade Europeia que pretende divulgar a importância da "Rede Natura 2000", consciencializando-nos sobre o património natural europeu.

Pode ainda informar-se sobre cegonhas negras na Costa Vicentina, inteirar-se da riqueza do património natural desta região e perguntar-se, como me aconteceu, porque razão teria Portugal ficado fora deste projecto, que envolve tantos países europeus.
Eu vou tentar saber porquê. Se alguém souber pode contactar-me.
Fique ainda com um mapa de localização dos sítios demarcados, em Portugal, pela Rede Natura 2000.

sexta-feira, outubro 14, 2005

Um Cont(inh)o (VII)

Com votos de um bom fim-de-semana, aqui está outro microconto (cerca de 50 caracteres):


  • Viajei, recuando no tempo, preso ao reflexo de um raio de sol.

quarta-feira, outubro 12, 2005

Certamente uma manhã chuvosa

Sim. Foi certamente uma manhã chuvosa que inspirou Nuno Júdice a escrever...

  • Cena de Província

    No café de aldeia, a mulher nova espera
    que alguém chegue para tomar o café com ela. Não pediu
    nada. Olha para fora, onde só as árvores se mexem
    com o vento, e é como se não olhasse para sítio
    nenhum. Na sua mesa de café de aldeia, sentada com o jornal
    de província à frente, de rosto fechado para todos
    os que estão no café - e para mim, ao balcão, olhando
    para ela enquanto acabo o café - a mulher
    nova espera que um deus chegue para tomar
    café com ela. É verdade que uma beleza estranha envolve
    o seu corpo; que as mãos têm as linhas puras de quem
    não precisa de as gastar em trabalhos e estações; e que
    o seu rosto traz a luz obscura de quem sabe que tem todos
    os desafios do amor para vencer. Hesito em pedir-lhe o
    jornal, pousar a minha chávena de café na mesa ao lado,
    perguntar-lhe como se chama; e contar-lhe algumas histórias
    desta aldeia, para que ela se vá embora, esquecendo
    esse deus que viria tomar café com ela. Mas
    a mulher nova continua a olhar para a rua, onde começou a
    chover. E quando chove, num largo deserto de aldeia,
    o ruído doce das gotas nos vidros até faz esquecer o bater
    das bolas, no bilhar ao lado, e a melancolia que escorre
    dos olhos da mulher nova que insiste em não abrir o jornal
    de província, em esquecer-se do encontro que está para
    não acontecer, e em olhar para mim, que acabei de pagar
    o café e saio, para apanhar a chuva que começa
    a cair com mais força no largo da aldeia.

Nuno Júdice
Teoria Geral do Sentimento
Poesia Reunida (1967 - 2000)
Publicações Dom Quixote, Lisboa 2000

terça-feira, outubro 11, 2005

Do olhar interior

Como, cá dentro, me sinto assim como ela o diz, recorro ao olhar de uma amiga:

  • Do olhar interior

    do desencanto já nem sobram as sombras
    só a linha contínua de um electrocardiograma
    feridas sem destaque escondidas algures
    limites sem contornos nem vedações
    apenas, ampliando a secura, o grito
    e o deserto perdido nas dunas

    nem sopro, nem sombra
    só um arfar que não sei se de raiva se de tédio.

Helena Monteiro
Linha de Cabotagem

segunda-feira, outubro 10, 2005

Fortalecer os laços comunitários

Num destes últimos fins-de-semana visitei uma pequena aldeia do interior do barrocal algarvio onde, em vez dos cartazes com os figurões da campanha autárquica, me deparei com as fotografias dos que antes habitaram ou agora residem em cada uma das casas dessa aldeia.
Em cada janela, lá estavam os retratos dos que ali viveram ou agora habitam
Querença, Setembro 2005, © António Baeta Oliveira
Sabemos todos que não é fácil conceder autorização para colocar assim, às nossas janelas, a nossa própria imagem, numa ostentação pouco habitual; a não ser que exista uma determinada confiança em quem nos sugeriu tal ideia ou uma adesão entusiástica ao que nos foi proposto.

Pois foi essa confiança e esse entusiasmo o que se gerou entre a população de Querença, a tal aldeia, e o bando, uma companhia de teatro, de Palmela, que aqui se instalou em residência artística, ao longo de quatro meses, no âmbito de Faro, Capital Nacional da Cultura 2005.

Querença, Setembro 2005, © António Baeta Oliveira O evento comunitário que ali ocorreu, no passado dia 25, recriando um casamento à moda antiga, testemunha essa confiança, patente nesta fotografia, onde a intérprete de Ti Miséria, a velha noiva, actriz, gera evidentes cumplicidades com a população local.
O fortalecimento dos laços comunitários revela-se na participação colectiva e activa, no diálogo com os actores, integrando a própria cena, partilhando contos, memórias, tradições locais ou, simplesmente desfilando, como muitos outros, orgulhosamente ao lado da sua própria fotografia.

Querença, Setembro 2005, © António Baeta Oliveira
  • (...) E fui compreendendo cada vez mais que, para mim, contemporaneidade implica uma relação muito especial também com o passado, com as memórias. Não o passado no sentido conservador, mas com a grande criatividade popular. Às vezes pensamos que aquilo é só tradição, que é tudo muito conservador, que não se transformou, que não é motivador de interesse sobre a modernidade. Mas aborda as temáticas que são comuns a todos os tempos, como o amor, a morte ou o ciúme. (...)

João Brites, director de o bando, ao Barlavento

domingo, outubro 09, 2005

quinta-feira, outubro 06, 2005

Um Conto (XV)

  • Quando o dia se fez noite.
    Quando a noite se fez dia.


    Vivia intensamente aquela situação. Como se o mundo estivesse ao contrário. Como se o meu ciclo de vida, por qualquer razão que me escapava, se tivesse invertido.
    As praças, os jardins, as ruas, as lojas, os bancos, os edifícios públicos, os cafés, os restaurantes, cheios de gente. As pessoas apresentavam uma vitalidade e uma alegria de viver algo perturbadoras. Inquietava-me a presença da luz das velas, dos candeeiros eléctricos, das outras fontes de luz improvisadas e, no céu escuro daquela noite, a lua, em quarto crescente. Era como se todos se tivessem erguido das suas camas e saído para a rua, em plena noite, numa loucura colectiva que me estonteava, pela surpresa, e me acalmava pela paz que se fazia sentir, difusa entre a multidão. Era uma experiência única; nenhuma das noites que antes vivera se assemelhava àquela.

    Em dado momento iniciou-se uma lenta debandada. Impelidas por qualquer força exterior ou interior, como num mimetismo colectivo, as pessoas começaram a abandonar os restaurantes, os cafés, os edifícios públicos, os bancos, as lojas, as ruas, os jardins, as praças, e a encaminhar-se, como sonâmbulos, em direcção às suas casas.
    Assim procedi também.

    Já só, num quarto de hotel, com a luz do sol a invadir o habitáculo, fui surpreendido pela decoração algo exótica do local.

    Mergulhei no travesseiro. Sonhei que estava em Marraquexe, pelo Ramadão.


quarta-feira, outubro 05, 2005

Um tema do Windows dedicado a Portugal

Soube hoje, via O Repleto, da existência de um tema do Windows dedicado a Portugal e aos países de língua portuguesa, sobre os Descobrimentos Portugueses, com ícones próprios e várias imagens de fundo baseadas na nossa cartografia.
Os interessados podem clicar na pequena ilustração acima e efectuar o download de acordo com os habituais procedimentos.
Eu já cá o tenho e estou deliciado com a setinha do rato: um braço com manga a condizer e uma mão que segura uma pena, como quem escreve.

terça-feira, outubro 04, 2005

رَمَضَانْ - Ramadão

Também hoje, na sequência da Lua Nova, além da entrada dos judeus no seu novo ano, no mês de Tishri, entram os muçulmanos no seu 9º mês, o Ramadão, vivendo um longo período de interioridade, com meditação e jejum.

É um período muito particular da vida destes povos do Islão, a que já o ano passado aqui me referi e onde pode encontrar comentários com testemunhos curiosos de quem já viveu essa experiência.

Nunca tive oportunidade de estar num país muçulmano por esta época, mas o que imagino ou ficciono irá estar aqui na forma de um conto, muito provavelmente na próxima quinta-feira.

Aos amigos muçulmanos que conheço, faço votos de um Bom Ramadão!

segunda-feira, outubro 03, 2005

רֹאשׁ הַשָּׁנָה - Rosh Hashanah

Hoje, ao pôr do sol, os judeus irão reunir-se nas suas comunidades e templos em comemoração do Ano Novo Judaico, o ano de 5766.
O novo ano começa amanhã, no 1º dia do mês de Tishri.

Saudando Nuno Guerreiro, autor do blog Rua da Judiaria, remeto-vos para uma muito bela citação do Talmude (clique aqui), ilustrada com uma reprodução de uma esplêndia pintura de David, o célebre pintor do neoclassicismo francês.

Ao Nuno e a todos os meus amigos judeus, faço votos de um Bom Ano Novo!

domingo, outubro 02, 2005

Eclipse

© Observatório Astronómico de Lisboa
Observatório Astronómico de Lisboa

Amanhã (segunda-feira), terá lugar um eclipse anular do sol, em rota pelas regiões do Norte de Portugal. A designação de anular é atribuída porque a sombra da lua, projectada sobre o Sol, não fará uma cobertura completa, deixando um anel luminoso como na figura acima.

Ele será avistado na nossa região (Algarve), com uma grandeza de cerca de 84%, na sua maior fase, por volta das 09h55, com início às 08h39 e término às 11h19.
Proteja os seus olhos, ou algum outro mecanismo que utilizar para a observação ou registo do fenómeno, do perigo da radiação solar.

Clicando na imagem acima, um link que lhe está associado, direccionado para o Observatório Astronómico de Lisboa, permitir-lhe-á obter informações mais detalhadas.

Amanhã também, pelas 11h27, pouco depois do fim do eclipse, será tempo de Lua Nova, referência para a contagem dos meses e dos anos dos calendários islâmico e judaico.

sexta-feira, setembro 30, 2005

Um Cont(inh)o (VI)

De novo, um microconto (cerca de 50 caracteres):


  • Um dia, ao arrumar as ideias, arriscou-se a perder a cabeça.

quarta-feira, setembro 28, 2005

Na linha dupla das estações

Nuno Júdice regressa ao Local & Blogal como já sucedeu várias vezes (visite a compilação ao fundo da página), quase sempre quando aquilo que dele leio condiz com o que me alegra e me rejubila, ou com o que me atormenta, me inquieta e me incomoda, enfim, com o meu "estado de alma", seja lá isso o que for.

  • Poema

    Escrevo na linha dupla das estações:
    o outono, o inverno; e ainda
    a primavera, ou o verão - quando
    o azul cai, ao fim da tarde,
    ou não chega a nascer
    das grandes névoas matinais.

    Sei que, no fundo do poema,
    um sentimento se arrasta;
    e coincide com o tempo
    que o inspirou, com esse lodo
    de emoções que se juntou
    na alma, submergindo na sua
    monotonia o impulso divino.

    Não perco tempo a ver
    as árvores, os arbustos que se
    enchem de flor com o primeiro
    sol, ou as pedras molhadas como
    dorsos de antigos animais. Volto
    para mim próprio como quem
    regressa de viagem; e não
    estava à minha espera,

    intruso, visita
    indesejável na minha vida.

Nuno Júdice
Meditação sobre Ruínas (1994)
Poesia Reunida (1967-2000)
Publicações Dom Quixote, Lisboa 2000

segunda-feira, setembro 26, 2005

As laranjas, de Ibn Sara

Faz tempo que aqui não deixava um poema daqueles autores que habitaram este mesmo espaço geográfico, se bem que noutra época e civilização, e aqui escreveram sobre um imaginário que nos é comum e que o tempo e os homens ainda não conseguiram dirimir.
Ibn Sara, de Santarém, figura entre os meus poetas preferidos e aqui mais citados. (Veja a compilação ao fundo da página)
O poema que vou transcrever, e que me toca de perto porque o seu tema é o horizonte do meu dia-a-dia, já aqui foi referido, numa outra tradução, a que podeis aceder através de um link que figura neste post, de Maio de 2005.
Dedico-o à Manuela, de Dias com árvores.

  • As Laranjas

    laranjas são brasas vivas sobre ramos
    ou rostos espreitando entre colinas verdes?
    e a ramaria, folhas que baloiçam
    ou formas frágeis que me causam pena?

    vejo-te, laranjeira, com os teus frutos,
    lágrimas rubras dos tormentos do amor.
    são sólidos mas, se fundidos, vinho seriam
    moldados pelas mãos mágicas da natureza.
    são bolas de cornalina sobre ramos de topázio
    à espera do açoite da brisa.
    porque tais frutos beijamos,
    ou seu cheiro aspiramos,
    eis que às vezes nos parecem
    ou rostos de raparigas
    ou pomos feitos perfume.

Adalberto Alves
O meu coração é árabe
Assírio & Alvim, Lisboa 1999

Improvisation
Alla
Fondou de Béchar
al sur (1994)


Powered by Castpost

quinta-feira, setembro 22, 2005

Um Conto (XIV)

A marca outonal do conto que se segue, mais precisamente de fim de férias, de final de Verão, leva-me a quebrar o hábito de publicação de um conto à sexta-feira.
Hoje, quinta-feira, o Equinócio de Outono apresentar-se-á pelas 22h23, para as coordenadas de Silves, e será mais pacífico, conto eu, do que o que vem acontecendo nas estradas portuguesas, ano após ano, pelos finais de férias e feriados.

  • O efeito da luz no ocre da falésia

    Só teve tempo de travar. O carro ainda embateu, ligeiramente, de encontro ao rail que delimitava a via. Atordoado, apercebeu-se de que estava fora de mão, numa situação de elevado perigo para si e para os outros que ali circulavam, intensamente, no regresso de férias.

    Que férias!!!

    Sorria, certamente, enquanto revia as preguiçosas e despreocupadas manhãs, a longa e descontraída cavaqueira ao jantar, com os amigos, as animadas e despreconceituosas festas, noite fora. As tardes, na praia, a ler, a ouvir música, banhando-se amiúde nas tépidas águas do mar ou fitando, abstraído, o efeito da luz no ocre da falésia.

    Foi aí que um violento raio de sol o despertou da sonolência e o acordou, no momento em que o seu carro seguia perigosamente descomandado.


terça-feira, setembro 20, 2005

A abstenção é o descrédito na mudança

O que escrevo por aqui tem a ver com as minhas preocupações pessoais, nas quais incluo a minha relação com a cidade, os cidadãos e a cidadania.
Se, porventura, ultimamente me venho referindo com maior frequência à actuação da Câmara Municipal de Silves, particularmente à da sua presidente, a quem, em última análise, cabem as responsabilidades, tal se deve a uma maior profusão de manifestações públicas e declarações, em crescendo certamente até ao acto eleitoral.
É assim natural que eu tenha um maior número de assuntos locais sobre que me pronunciar, evitando as diatribes do diz-que-disse, contribuindo com a minha opinião crítica, contrapondo sugestões e actuando com isenção e independência em relação ao jogo partidário.

Acontece que o acto eleitoral traz consigo outras vozes, que muito raramente se fazem ouvir, e que se me dirigem, dizendo contar connosco, com as pessoas, com mais ou menos energia renovável ou tradicional.
Acho que a oposição também tem contas a prestar, embora não pareça. É que muitos de nós, muitas vezes a maioria de todos nós, acabamos por votar na oposição.

O que me pergunto é o que farão de futuro os que não vierem a alcançar o poder e cuja atitude, nessa circunstância, poderia ser um dos motivos que me conduziriam ao voto.
Não estou interessado em quem detém o poder - «o poder sempre corrompe» - mas antes em quem o fiscaliza, em quem se lhe opõe, contrapondo uma outra forma de encarar as soluções políticas, que não as partidárias ou de mera gestão da coisa pública.
Se as actuações das autarquias se limitassem a decisões sobre o que é "melhor para o concelho", como se cada um não tivesse um entendimento próprio do que é ou não o "melhor para o concelho", não precisaríamos de eleições. Bastar-nos-ia um bom gestor, escolhido em concurso público.

O que espero, então, dos que vierem a ficar na oposição, é poder contar com eles nos actos de fiscalização e na disponibilização regular dessa informação:

  • da parte dos vereadores, sobre a forma como votaram e por que o fizeram dessa maneira, em cada uma das decisões da câmara municipal, exigindo, não só, que se tornem públicas as actas, mas que o seu teor consiga chegar ao conhecimento do mais comum dos cidadãos, envolvendo-nos na compreensão das decisões políticas, fazendo viver a cidadania;
  • da parte dos representantes na Assembleia, que se não limitem a disputas partidárias, quando não pessoais, em mimetismos da actuação parlamentar, que afastam os cidadãos pelo desinteresse; quanto às actas e sua divulgação, exigir que não se fique pelo mero cumprimento da lei, mas que elas sejam um contributo à discussão pública, à participação democrática dos cidadãos; eventualmente um tema de debate nas assembleias de freguesia.

Sonhos meus, dirão.
É porque existe o sonho que eu acho que votamos, tentando mudar, talvez mais a maneira como os partidos procedem, inovando, do que propriamente a cor no poder.
Quando deixarmos de crer na mudança, para que servirá o voto?

sexta-feira, setembro 16, 2005

Um Conto (XIII)

  • Aquela paz sem fim

    Deitado de costas sobre a areia molhada, comecei a aperceber-me de que estava rodeado de gente. Surpreenderam-me os olhares atónitos, os grotescos ritos faciais.

    Era uma plena tarde de Verão. Uma faixa de areia dourada demarcava o contorno da baía. O mar confundia-se com o céu num matizado de azul, de um inebriante azul.
    Desci à praia. A calma ondulação convidava ao mergulho. O corpo aceitou com agrado o contacto com a água tépida. Mergulhei. Pareceu-me avistar um rochedo, isolado naquele fundo de areia. Tomei fôlego. Mergulhei de novo, mais profundamente. A refracção do sol projectava fantasmagóricos cambiantes de luz, evolucionando ao sabor da corrente que agitava as algas em atraentes movimentos baléticos. Curiosos peixes, pequenos e irrequietos camarões, até um polvo, que se escondia na sua toca, participava, com os seus tentáculos, nesta coreografia.

    Subitamente algo aconteceu.

    O rochedo ganhava a configuração do corpo dela, nua e palpitante. O seu sorriso, de maliciosa inocência, o penetrante olhar, os braços ondulantes abrindo-se para mim, o corpo em abandono, oferecendo-se-me.
    Recordo o amplexo do nosso desejo e uma inquebrantável vontade de me aninhar a seu lado e com ela ficar, docemente, naquele sossego, naquela paz sem fim.


P.S.
A propósito do desastre de New Orleans, chamo a atenção para estas três galerias de fotos, com música, sob o título "Jazz em silêncio", no Público. (clique no sublinhado)

quarta-feira, setembro 14, 2005

Uma Revista dedicada a Silves e seu Património

Sé de Silves, Agosto de 2005, © António Baeta Olveira

No Dia da Cidade, no Salão Nobre dos Paços do Concelho, ocorreu o lançamento do último número da revista Monumentos, uma publicação semestral da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, na sua maior parte dedicada a Silves.

Um dos artigos da citada revista, assinado por Fernando Pessoa, arquitecto paisagista, refere-se a «Silves e a sua paisagem».
Na sequência do meu post anterior, dedicado à Serra, ocorreu-me trazer-vos algumas transcrições do referido artigo, pela sua importância e já que não será fácil ter acesso a esse documento.

O autor começa por afirmar: "Falar da paisagem envolvente de Silves não é, infelizmente, tão agradável como poderia ser se a sua qualidade ambiental fosse outra".
Descreve então Silves com algumas referências à sua história, à sua situação geográfica, à sua geologia e à natureza diversificada do seu concelho, «do litoral ao barrocal e até à serra».
Prossegue, referindo a flora e a degradação a que foi sendo sujeita a cobertura florestal, aceleradamente a partir do século XX com as campanhas do trigo do Estado Novo: «O abandono das terras declivosas, face às magras colheitas de cereal, deixou as encostas entregues à erosão, e apenas a esteva acabou por se fixar nos solos pedregosos e quase estéreis. Por fim, nas últimas décadas, foram as campanhas do eucalipto que completaram a desolação».
Depois, os fogos florestais.
Discorre em seguida sobre alguns produtos da serra, nomeadamente o gado e o mel e regista algumas várzeas cultivadas. «A ribeira de Odelouca é um dos cursos de água que atravessa a paisagem da envolvente de Silves e que apresenta ainda uma galeria ripícola bem conservada, nomeadamente com grupos de amieiros, representando um dos melhores trechos de património natural do Algarve».
Descreve mais algumas zonas, a que se refere como «...relíquias de flora indígena...». Propõe passeios a pé, à descoberta da natureza, pela Sapeira e vale da ribeira de Odelouca, pela «água calma dos pegos» e ainda pela ribeira de Benafátima. Refere então as barragens, do Arade e do Funcho, a irregularidade do regime de chuvas e o seu baixo armazenamento, e a pobre, desordenada e monótona paisagem envolvente, «... com base em eucaliptais de tipo industrial.»
Segue-se uma nota às décadas de fundos comunitários desperdiçados e desce ao vale do Arade e aos seus extensos laranjais, para afirmar: «Pomares e hortas ainda vicejam, mas se não se implantar uma política coerente de gestão global dos recursos hídricos é mais um sector da economia agrícola que fica seriamente ameaçado e, com ele, toda uma bela paisagem com séculos de existência».
Então o rio, a partir de Portimão, onde: «... os meandros acentuam-se, deixando ilhotas de sapal e margens de sapais altos, onde as garças, patos reais e muitas outras aves aquáticas nidificam ou ali encontram refúgio e alimento. Muitos trechos marginais mantêm um relativo bom estado de conservação».
Quase a terminar, lastima: «Hoje, ao subir-se o rio Arade, e à medida que nos aproximamos da cidade, a poluição e o cheiro retiram o prazer da viagem, e a água apresenta o mau aspecto dum rio de qualquer país onde os cuidados com a saúde pública sejam neglicenciados. O apregoado Projecto de Navegabilidade do Rio Arade talvez venha a ter como consequência positiva a solução destes problemas, até mesmo o do péssimo aspecto urbanístico que a cidade apresenta na sua urbanização marginal, sobretudo para quem chega de barco, e que contrasta negativamente com a formosura da encosta da cidade antiga».
Conclui: «A possibilidade [de poder «cantar a paisagem de Silves como o faziam os antigos senhores que dela fizeram capital sumptuosa...»] existe, assim venham também a existir a consciência ambiental e a capacidade cultural de quem terá que decidir o futuro da paisagem envolvente de Silves».

P.S.
1. A propósito do meu post anterior vai daqui um grande abraço ao João, de Asul.
2. Ainda um abraço a outro João, o Scotex, pela referência elogiosa.
3. Amanhã, sexta-feira, haverá um novo conto, o 13º.

segunda-feira, setembro 12, 2005

Que viva a SERRA!

A Serra em abandono, Abril de 2005, © António Baeta Oliveira

Vai regressar Silves, depois de uma itinerância por Querença, Salir, Alte, São Bartolomeu de Messines e São Brás de Alportel, locais serranos, desde Maio passado, a exposição da 4ª Batida Fotográfica do APARTE/Racal Clube, dedicada à Serra e que contou com a colaboração da In Loco, uma Associação para a Intervenção, Formação e Estudos para o Desenvolvimento Local.
Apresentando a exposição, como quem comenta as fotografias, segue um texto de minha autoria que quero compartilhar com os que aqui me visitam, como um canto de alerta, numa chamada de atenção para a nota que se lhe segue:


  • Observem os rebentos dos novos plantios e das flores da esteva, do rosmaninho e doutras plantas silvestres vestidas de Primavera. Vejam as árvores que crescem, parecendo querer atingir o firmamento. Notem as casas abandonadas, os fornos que um dia serviram para fazer pão, os utensílios que se usaram para matar a sede. Olhai as máquinas e os apetrechos que remendaram uma camisa ou umas calças gastas pelo uso ou costuraram o vestido da filha para ir à festa. Aqui estão os animais, a seca, as represas, os caminhos. Aqui ficaram as máquinas agrícolas apanhadas de surpresa pelo fogo destruidor e as marcas indeléveis que o seu furor deixou. Aqui está também a quietude que se não interrompe, antes se conjuga com o cantar das aves e se prolonga nos horizontes longínquos de uma serra quase em abandono, tantas vezes mal tratada, e sem a qual não poderemos sobreviver, por mais tecnologias e processos que a civilização humana possa inventar.
    Ainda aqui figura o Homem.

    Que viva a SERRA!

Nota muito importante:
Em Julho passado caducou a concessão, à Câmara Municipal, da Zona de Caça Turística da Serra de Silves. Foram retiradas as tabuletas que informavam e delimitavam essa zona. As candidaturas à gestão deste espaço de caça ainda não foram apreciadas pelas entidades competentes. Está criado um vazio legal que torna este vasto espaço da Serra de Silves numa zona de caça de regime livre.

Ao longo destes anos de caça condicionada e apesar dos fogos, cresceu imenso o número de exemplares de espécies cinegéticas, deixando cobiçosos os caçadores, nomeadamente por veados e javalis, que ali abundam.

Se a 2 de Outubro, com a abertura da caça, esta situação não for prevenida, irá ocorrer um massacre, para além dos perigos a que estarão sujeitos os próprios caçadores, numa zona de regime livre, sem segurança nem ordenamento.

Vai daqui o meu veemente apelo: às entidades responsáveis para a urgência de uma decisão que tarda e para a reposição das tabuletas, aos visitantes deste blog para a divulgação desta nota.


Uma das formas de alertar para este meu apelo é clicar no envelope igual a este, aí em baixo, enviando esta página para:

Direcção Regional de Agricultura do Algarve
draalg@draalg.min-agricultura.pt
Chefe de Gabinete da Presidente da Câmara Municipal de Silves
cms.chefegabinete@oninet.pt
Gabinete Técnico Florestal
cms.jsilva@oninet.pt
Assim, não poderão escudar-se no desconhecimento. Conto convosco!

sexta-feira, setembro 09, 2005

Um Cont(inh)o (V)

É tempo de outro microconto (cerca de 50 caracteres):


  • À excitação do medo sucedia-lhe a paralização pelo pavor.

quarta-feira, setembro 07, 2005

Aí está o teatro. Que viva o Teatro!

Teatro Mascarenhas Gregório, Setembro 2005, © António Baeta Oliveira

Está aí, finalmemente restaurado, o querido Teatro Mascarenhas Gregório.
É certo que falta concluir algumas obras e acabamentos, nomeadamente no hall de entrada, agora expandido a toda a nova frente virada à rua Cândido dos Reis, mas o restauro, mais exactamente a sua reabilitação, é já uma realidade.

Foi devolvida à cidade uma peça preciosa do seu património e uma infraestrutura básica do deficitário equipamento cultural de Silves, passadas três décadas de poder local.
Não há mais desculpa para que a Câmara de Silves continue a ser uma das poucas que, no Algarve, não presta apoio à sua orquestra, a Orquestra do Algarve, e à sua companhia de teatro, a ACTA. Os silvenses têm sido privados do acesso à música e ao teatro que se faz e dignifica a região, numa vergonhosa quebra de solidariedade institucional.

E depois? (perguntava eu, já em 8 de Janeiro de 2004):

    Que estruturas técnicas e humanas existem para edificar um projecto criterioso para aquele edifício? Que meios financeiros?
    É que, sem a criação dessas estruturas técnicas, humanas, financeiras, com um plano de base que vise a formação de públicos diversificados, teremos um edifício fechado na maior parte do tempo, com um programa sujeito à oferta ocasional, ou, no pior mas mais credível dos cenários, ao serviço do gosto bacoco e novo-rico dos musicais e revistas na moda ou das propostas alarves dos programas de recreação à maneira da SIC ou da TVI, tão ao gosto do "povo", como se diz, que tem costas suficientemente largas para ter que aguentar com o que lhe querem oferecer.
    Não estou a defender o meu gosto, que provavelmente só mereceria também o interesse de muito poucos, mas a chamar a atenção para a necessidade da criação de uma estrutura profissional, que garanta que os dinheiros públicos sirvam a promoção da cultura e nos torne cidadãos mais capazes.

Mas não tenhamos ilusões. Apesar de tudo, este edifício não vem suprir a necessidade de um auditório, a articular com uma estratégia ligada à indústria turística, de vocação científica e cultural, a apoiar conferências, encontros, sessões de estudo, em ligação com o Instituto Piaget, os pólos universitários locais, o Centro de Estudos Luso-Árabes.

A cultura não se pode confinar ao mero consumo. Há que apoiar e incentivar a fixação de profissionais nas várias áreas de expressão cultural e nas tecnologias associadas, fomentando a formação e a produção, tornando o acto cultural uma prática que, desde as escolas, chegue às famílias e envolva o tecido social, mudando mentalidades e contribuindo para o progresso social, a par do desenvolvimento económico.

segunda-feira, setembro 05, 2005

Ainda a inauguração do Teatro Mascarenhas Gregório

Confirmou-se o teor do título do meu post anterior:

Equipamento público em inauguração privada

Entrada livre foi uma mentira.
Teatro Mascarenhas Gregório, Setembro 2005, © António Baeta Oliveira
Nesta sala os convidados, com convites verificados pela segurança da Fábrica do Inglês, sem contar com os que sempre se "safam" nestas situações. Teatro Mascarenhas Gregório, Setembro 2005, © António Baeta Oliveira

Em espaço contíguo, ao ar livre, o público anónimo, que acorreu na esperança de um lugar, assistindo, em projecção vídeo, ao que se passava na sala.

Eu não estive presente. Estas fotografias foram tiradas na tarde do mesmo dia. Quem lá esteve confirmou-me a descrição que aqui fiz do tipo de público que lá estaria e da escassa presença de silvenses.
É claro que nem todos podem caber na sala; isso acontece e espero que venha a acontecer muitas outras vezes, em sessões esgotadas, com muita afluência de público. Mas aí, apesar de alguns convites, que também sempre existirão, haverá bilhetes - públicos. E quando a sessão estiver esgotada, paciência, como em todos os espectáculos.
Poderei ter a oportunidade de assistir a uma segunda sessão, de ver através da televisão, mas não posso dizer que nesse dia estive no estádio, mesmo que à sua porta, no concerto, mesmo que ouvisse o som no exterior do recinto, na inauguração do teatro, mesmo que tivesse entrado para ir à casa de banho e espreitado por alguma porta entreaberta.

P.S.
Mais um exemplar testemunho das decisões da Sra. Presidente, reveladoras da forma como entende o que é estar ao serviço da comunidade. Leia em Saco dos Desabafos.
Da mesma maneira actuou com o CELAS (Centro de Estudos Luso-Árabes de Silves) em circunstâncias que aqui relatei em Há polémica a propósito do ... Dizia eu então, descrevendo a atitude da Sra. Presidente: «... é proceder como o senhorio que aluga ao inquilino uma determinada moradia e pretende gerir o que se passa no seio da família que para lá vai habitar.»

sábado, setembro 03, 2005

Equipamento público em inauguração privada

Dia da Inauguração, após restauro, do Teatro Mascarenhas Gregório, em Silves, © António Baeta Oliveira

A Câmara Municipal de Silves vai inaugurar, após restauro, o velho Teatro Mascarenhas Gregório, mas vai fazê-lo numa cerimónia privada, já que só há lugares para convidados; por sinal com a exigência cerimoniosa de black tie, conforme me foi revelado.
"Gente fina é outra coisa!"

Quem opta decide, apesar das circunstâncias, de acordo com as suas ideias e a forma como entende o mundo. Daí que as decisões sejam reveladoras de quem opta.

Cada um convida quem quer e não tem que se justificar perante alheios, mas a sua decisão não deixa de ser reveladora.
Já uma câmara municipal não se pode alhear dos seus munícipes, e as suas decisões não deixam de ser reveladoras de uma maneira de ser e estar, sujeitas ao parecer e julgamento dos cidadãos. Uma democracia vive do julgamento dos cidadãos, mas não sobrevive sem a sua participação activa.

O Teatro Mascarenhas Gregório foi durante meio século, aproximadamente, sede da Sociedade Filarmónica Silvense. Ali, por via da música, do teatro, de outras actividades que solicitam a participação colectiva, a expressão artística e cultural, passaram muitas gerações dedicadas e altruístas. Será que entre os convidados, e por esta específica razão, estarão algumas dessas pessoas, particularmente os seus dirigentes e figuras mais representativas, já que a todos seria impossível convidar para uma só sessão inaugural e eventualmente muitos seriam esquecidos?
Aos que mais interessa a actividade cultural são os seus agentes, os que usam parte do seu tempo na realização de actividades e se congregam em associações e colectividades afins. Será que entre os convidados, e por esta razão específica, estarão algumas dessas pessoas, particularmente os seus dirigentes e figuras mais representativas?
Houve até em tempos uma Comissão visando a restauração deste velho teatro e que encaminhou muitas das iniciativas que conduziram à definição e aquisição do edifício como de interesse municipal, o planeamento de projectos apresentados em várias instâncias europeias e a definição de intenções do restauro que hoje se inaugura. Será que entre os convidados, e por esta razão específica, estarão algumas dessas pessoas, particularmente os seus dirigentes e figuras mais representativas?
Duvido de que estes fossem os critérios utilizado pela Sra. Presidente, responsável, em última análise, pelas decisões da autarquia. Melhor. Tenho a certeza de que esse não foi o critério, pois conheço-o através de outras decisões desta câmara municipal, sempre reveladoras da sua maneira de pensar e da forma como interpreta o mundo.

Quem serão então os convidados? Haverá quem não saiba?
Claro que serão a classe política regional e local, eventualmente um ou outro ex-ministro ou secretário de estado, com predominância para os correligionários políticos laranja, alguma oposição para não parecer mal, certas associações e instituições, empresários e amigos próximos da Sra. Presidente.
Poucas pessoas de Silves, para além das que integram a comitiva que descrevi.

«Isto é só p'ra nós!», quero dizer, é só para eles.

E tudo isto para fechar o teatro no dia seguinte, pois as obras terão que continuar.

Fico por aqui, embora tenha mais algumas coisas para dizer a este propósito, mas a escrita já vai longa.

P.S.
Já me constou que se publicitou na televisão que a entrada é livre.
Se tal for verdade é porque o assunto foi repensado à última hora.
Contactei por telefone um responsável pelo departamento cultural, perguntando como deveria proceder para adquirir um bilhete e fui informado de que a inauguração era exclusiva para convidados. Se não fora convidado não poderia assistir à inauguração.
Tal responsável ainda não me informou em contrário.
Contudo, privada ou pública, o fundamental da minha posição sobre o assunto não sofre alteração, pois a análise recai sobre o critério de escolha dos convidados.

quinta-feira, setembro 01, 2005

Recuar no tempo

Feira Nova, Marco de Canaveses, Verão de 2005, © António Baeta Oliveira

À escassa distância de alguns passos afasto-me da "feirinha" local, animada ao som do mais recente cantor de charme, que vende milhares de CDs junto da comunidade-portuguesa-espalhada-pelo-mundo, e mergulho no silêncio da aldeia, rodeado de espigueiros e velhas construções em pedra, sem que tenha chegado a entender se recuei no tempo ou se simplesmente se verificou um desajuste tecnológico.

Regresso de um fim-de-semana prolongado por terras de entre Douro e Tâmega, num retemperar de forças, como vos contei o ano passado aqui, (à distância de um clique) ou aqui , (ao fundo dessa página), em posts de 1, 2 e 3 de Setembro do ano passado.

sexta-feira, agosto 26, 2005

Um Conto (XII) - 2ª parte

(Continuação do post anterior)
  • Quem não lê, é como quem não vê

    (...) Também já lhe acontecera ver o botão referente à sua senha tapado com um papel. Apresentou a sua queixa a uma senhora de bata branca que lhe retorquiu:
    - «Não vê esse painel grande aí em cima dos guichets a dizer quais as especialidades que foram transferidas para o Novo Edifício!?»
    O Novo Edifício, que o informaram ser em frente das Urgências, e as Urgências, que o informaram ser em frente do Novo Edifício, fora uma situação nova e mais confusa, a exigir uma total exploração de novos procedimentos.
    - «As pessoas não são fáceis!», exclamava o Carlos de si para si.
    Punha-se a estudar os rostos e os olhares. Algumas, de boa feição e aparentemente disponíveis, nem sempre reagiam com disponibilidade; revelavam-se antipáticas e respondiam grosseiramente. Outras, de má catadura, com ar apressado, por vezes mostravam-se disponíveis e eram até capazes de alguma ternura e respeito pela sua idade e condição.

    Nesse dia, quando Carlos conversava com o médico, disse-lhe que não mais viria à consulta.
    - «O Sr. Doutor passa-me estes comprimidos muito caros e diz-me sempre que está tudo bem. A minha reforma mal chega para comer. Sabe quanto me custa vir aqui?»
    Quando Carlos inquiriu o médico sobre o custo da sua viagem, estava a referir-se ao dinheiro. Nunca lhe revelaria a sua odisseia até chegar ali, que ainda incluía o regresso a casa, com todas as vicissitudes.
    - «Quem não lê, é como quem não vê. Tem que aprender tudo de cor, como os cegos!», comentava para si.

    Ainda andara na escola e aprendera números e letras, mas ano após ano, a trabalhar, de manhã à noite, sem fazer uso dessas "coisas", como ele diria, acabou por esquecer.

    - «Bem falta me têm feito, depois desta maldita doença que um dia me há-de matar!»


quinta-feira, agosto 25, 2005

Um Conto (XII) - 1ª parte


(A 2ª nota é uma montagem fictícia)

  • Quem não lê, é como quem não vê

    Carlos, que vivia só, depois da morte da sua mulher, há algum tempo, fora acometido por uma doença crónica. Regularmente, de seis em seis meses, deslocava-se ao Hospital Central da sua região, a cerca de 80 km, para observação médica.
    Cedo, pela manhã, evocava o procedimento adequado e marcava no telefone o número da praça de táxis da cidade mais próxima, a 12 km da sua aldeia. Em cerca de meia hora estava a comprar o bilhete de comboio.
    A viagem, depois, era bem mais demorada. Finalmente na estação de destino, conseguia com facilidade o táxi que o conduziria ao hospital.

    Nem sempre assim acontecia.
    Já lhe sucedera haver um vizinho que ia à capital nesse dia e o deixara directamente à porta do hospital. Outras vezes apanhara boleia até à cidade e daí um autocarro até à estação, mas ultimamente não havia esse autocarro de ligação e então ia a pé, uns 2 km, se tivesse tempo, ou de táxi, se o tempo escasseasse.
    Na capital receava sempre não apanhar um táxi. Sucedera-lhe uma vez e não foi fácil chegar ao hospital, numa cidade grande, que desconhecia, e sem indicações que pudesse utilizar. Chegara tarde à consulta e teve que cumprir de novo, uma semana depois, esta peregrinação que lhe coubera em sorte.

    Já no hospital, dirigiu-se directamente ao edifício das Consultas Externas e retirou a senha com o seu número de espera, depois de ter pressionado o botão referente à sua especialidade, de entre vários outros, para outras tantas especialidades.
    Agora, toda a sua atenção se concentrava nos vários quadros com algarismos, tentando descobrir o momento em que um dos quadros revelasse algarismos iguais aos que a sua senha ostentava.

    Já lhe sucedera apresentar a sua senha com algarismos iguais ao do quadro e ouvir dizer, do outro lado do balcão:
    - «A sua senha não é desta especialidade. Aguarde por esse número dois guichets à sua esquerda.» (...)

    (Continua amanhã)



terça-feira, agosto 23, 2005

Um poema e a promessa de um conto

Uma açoreana passou por aqui outro dia, na rota de Vitorino Nemésio, e estranhou a ausência de Antero na minha "colecção de poetas". É Antero que vos trago hoje e a promessa de mais um dos meus contos na próxima sexta-feira. Acontece que, mais longo do que o habitual, dividi o conto em duas partes; a primeira parte será aqui publicada na quinta-feira.

  • Tormento do Ideal

    Conheci a Beleza que não morre
    E fiquei triste. Como quem da serra
    Mais alta que haja, olhando aos pés a terra
    E o mar, vê tudo, a maior nau ou torre,

    Minguar, fundir-se, sob a luz que jorre;
    Assim eu vi o mundo e o que ele encerra
    Perder a cor, bem como a nuvem que erra
    Ao pôr do sol e sobre o mar discorre.

    Pedindo à forma, em vão, a ideia pura,
    Tropeço, em sombras, na matéria dura,
    E encontro a imperfeição de quanto existe.

    Recebi o baptismo dos poetas,
    E, assentado entre as formas incompletas,
    Para sempre fiquei pálido e triste.

Antero de Quental
Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa
Eugénio de Andrade
Campo das Letras, Porto, 2001

P.S.
Hoje, 24, exultei de alegria com a notícia da reabertura, após completo restauro, do Teatro Mascarenhas Gregório. Podeis aceder à notícia em www.silves.web.pt, um site sobre Silves que mantenho há mais de oito anos, e cuja divulgação agradeço.
Entretanto, com esta notícia, ganhou extrema actualidade um post que aqui deixei em (clique no sublinhado) 8 de Janeiro de 2004.

segunda-feira, agosto 22, 2005

Em nome da paz e de um certo deus


© Muhammed Muheisen/AP/Público


Entre as imagens de confronto e desespero dos colonos, esta outra de pai e filho, palestinianos, que alegremente se banham nas águas deste mar de Gaza, que crêem pertencer-lhes.

São estes mitos velhos em luta pela sobrevivência, num confronto político-religioso de que se não vê o fim; em nome da paz e de um certo deus.


www.coexistence.art.museum

quarta-feira, agosto 17, 2005

A Feira Medieval passou por aqui

Têm-me perguntado, com certa frequência, o que achei da Feira, como quem procura uma nota dissonante, uma apontamento polémico, algo que fuja ao tom generalizado e acrítico da apreciação comum. O que tenho a dizer já o disse o ano passado. Faça o favor de ler clicando aqui (no sublinhado).

Reafirmo que me diverti, que gostei, que me agradou, que foi bom, mas... que nada se alterou de fundamental. De Feira Quinhentista passou a Feira Medieval. Saíram os Camões, os Cabrais e os Gamas, os muçulmanos foram colocados fora da Medina, os judeus é como se não existissem, apesar de parte da Feira ter lugar na antiga judiaria.

A programação está demasiado dependente da empresa contratada para a animação geral, particularmente vocacionada para a Idade Média, simbolicamente estereotipada nos modelos do cinema americano. A culpa não é dessa empresa, certamente. A Câmara poderia contratar, eventualmente com a mesma empresa, um modelo diferente, que distinguisse o que se passa em Silves do que se passa em todas as outras povoações com castelo pelo país fora, numa moda que algum dia começará a enfastiar.
Entretanto a Feira cresce, crescerá ainda bastante mais e vamos ficar deslumbrados com o seu "sucesso", sem querer olhar para os perigos da massificação e inevitável desgaste da sua imagem.

Definam-se estratégia e objectivos. Talvez se conclua pela necessidade do reforço da nossa identidade, pela aposta em episódios que recriem a história local, sem complexos em relação ao seu período mais brilhante e que mais carácter confere à cidade; o da presença islâmica. Talvez se questione esta teimosia em investir na época alta, trazendo mais gente, que pouco ou nada contribui para a economia local numa época em que a oferta hoteleira (incluo obviamente os restaurantes) está esgotada na sua capacidade. Talvez se descubra que há novas tendências de procura turística que contrariam a massificação, como se revelava outro dia no Seminário sobre Turismo e Desenvolvimento, que decorreu em Silves, por iniciativa da autarquia.

Afirmava um dos conferencistas desse Seminário, referindo-se ao turismo de massas em centros históricos:

«Quando o turismo destruir a identidade da cidade, ele deixa de existir.»


P.S.
João Cardoso, Director da companhia de teatro que garantiu a animação da Feira Medieval de Silves, Viv'Arte, comentou o meu post acima. Convido-vos a ler esse comentário, seguido do meu próprio, clicando aqui.

quarta-feira, agosto 10, 2005

Somos o que comemos

Sou o que como.
Sou o que vejo, oiço, cheiro, saboreio, sinto.
Sou o que leio, penso, discuto, elaboro.
Sou, no dizer de Ortega y Gasset, «eu e a minha circunstância».

Poderemos ser senhores das nossas preferências e decisões?

Quando comemos no restaurante que a publicidade, a proximidade, ou outra motivação qualquer nos levou a preferir, apresentam-nos, para que se escolha, a ementa que eles sugerem. Mesmo em casa, quem cozinha está balizado pelas ofertas do mercado e pelos hábitos forjados na infância, adaptados ao longo da vida.
Quanto aos sentidos, nada há de mais enganador. As informações sensoriais são tratadas no cérebro, que actua como um filtro cultural que se refina no convívio social, nas leituras, no cinema, na televisão, nas rádios, nos jornais, através de outras e variadíssimas formas de expressão, ao sabor das circunstâncias e dos condicionamentos.

Ora!

Quando assistimos a intervenções do capital financeiro comprando, abrindo e fechando jornais e estações de televisão, rádios e editoras, agindo em quase exclusiva conformidade com os interesses publicitários e a satisfação do lucro, moldando os gostos e as opiniões de enormes massas de gente em busca de uma identidade que se dilui e perde nas grandes urbes do anonimato.
Quando sabemos dos lobbies que pressionam instâncias governamentais, infiltrando-se nos aparelhos partidários, fazendo cair ministros, favorecendo investimentos do seu interesse, governando na sombra, apoiando ou retirando apoio aos partidos conforme os interesses financeiros da ocasião.

Quando nos deparamos com tudo isto, apesar dos filtros culturais, e nos vamos apercebendo, ao longo dos anos, que a um dado governo sucederá outro, que governará da mesma maneira apesar de se afirmar diferente, porque quem de facto manda não são eles nem essa classe média que dizem decidir o sentido do voto.
Quando ainda nos parece ser possível o livre arbítrio e o uso da nossa capacidade de decidir, mas sabemos bem lá no fundo que nada de fundamental se irá alterar a partir das nossas decisões e intervenções, não nos apetece perguntar se não seremos mesmo, como no conto abaixo, personagens de banda desenhada?

P.S.
1. Apesar da democracia nos ir permitindo saber notícias como a que se segue, que atingirá poucos e interessará ainda menos, permitam-me que a espalhe por mais gente: Destruição de vestígios romanos pode embargar campo de golfe.
2. Já deve ter dado para entender que o Verão gera algumas intermitências no funcionamento deste blog. Já pouco flui, nesta época, por este rio da blogosfera.

sexta-feira, agosto 05, 2005

Um Conto (XI)

  • Alienação

    O constrangimento era absolutamente insuportável.

    Não era senhor das suas próprias ideias. Nem a mais vulgar das decisões lhe era permitida. Até o simples acto de se deslocar era cometido de momento a momento. O guarda-roupa, dos sapatos ao casaco ou blusão, nem sequer lhe era proposto escolher. Roupa interior, nem vê-la. Podia frequentar um café ou um bar, ir ao cinema, ao ginásio, ao teatro, à ópera, a um concerto. Vibrar no futebol, numa corrida de cavalos, num combate de boxe. Confrontar-se com o perigo de um tiroteio de rua, do assalto a um banco. Passear pelo jardim ou exercitar-se na alameda. Visitar um museu ou uma galeria de arte. Trabalhar. Viajar. Nunca lhe competiria a menor das decisões.
    Até o falar! Ainda por cima com palavras que não eram as suas.
    Falava por balões.

    Não tinha como desistir. Não havia como deixar de ser personagem de banda desenhada.


P.S.
A 6 de Agosto, para não esquecer

HIROSHIMA

quinta-feira, agosto 04, 2005

Odeceixe à noite

Odeceixe, Verão 2005, © António Baeta Oliveira

É pelo final da tarde e início da noite que os restaurantes, os bares, os largos, as ruas se agitam, num frenesim que desmente a calma e o sossego da tarde (não patente na fotografia, pois tive que aguardar um momento menos agitado, para poder prolongar um pouco a duração da exposição). Também ainda não era Agosto, o mês das grandes invasões, se bem que em nada se comparem com as que acontecem no litoral algarvio.
Odeceixe renovou-se arquitectonicamente. A intervenção neste largo, em minha opinião, conserva os sinais mais identificativos da sua memória, mantendo o fontanário e algumas árvores, e devolve a praça pública à fruição dos seus residentes e visitantes, afastando as viaturas a partir das 8 da noite. Saibam os proprietários dos edifícios que rodeiam o largo manter as suas fachadas, apesar de algumas alterações menos felizes nos finais dos anos 70 e princípos de 80.
Odeceixe, Verão 2005, © António Baeta Oliveira

Na noite de 27 choveu (situação ímpar neste prolongado tempo de seca) e todos procuraram abrigo sob os toldos, deixando o largo vazio.
Bati a foto a preto e branco para evidenciar os reflexos da iluminação pública. Aí está agora, mais visível, o fontanário que mencionei atrás, já sem a inestética companhia da cabine telefónica de outrora.

P.S.
Termino aqui esta série de posts sobre a minha semana de férias por Maria Vinagre e Odeceixe.
Amanhã trar-vos-ei um novo conto.

quarta-feira, agosto 03, 2005

Odeceixe

Odeceixe, Verão 2005, © António Baeta Oliveira

A ribeira de Seixe encontra a sua foz na Praia de Odeceixe.
Odeceixe, vila, ainda dista alguns quilómetros da praia, num trajecto junto ao rio (ao fundo, na foto, divisa-se o casario branco da vila).

Odeceixe 2005, © António Baeta Oliveira   Odeceixe 2005, © António Baeta Oliveira   Odeceixe 2005, © António Baeta Oliveira

Odeceixe tem casinhas coloridas e brancas, bem equilibradas, recantos com graça. É aqui que se hospedam os turistas e veraneantes, clientes da oferta turística, a maior riqueza económica da vila.
Odeceixe 2005, © António Baeta Oliveira


A tarde é quente, arrastada, a lembrar o Alentejo ali ao lado (na outra margem do rio). Só à sombra se encontra acolhimento, depois da sesta, antes ainda dos frequentadores da praia começarem a regressar.

terça-feira, agosto 02, 2005

Praia de Odeceixe

Odeceixe, Verão 2005, © António Baeta Oliveira

A Praia de Odeceixe é este trecho de paraíso sobre o mar, na Costa Vicentina, no oeste algarvio, a poucos quilómetros de Maria Vinagre.

Vi as minhas filhas crescer aqui, em cada verão. A semana passada partilhámos, ao sol, esses prazeres da praia e recordámos episódios de outras épocas onde o crescimento também acontecia no contacto com amigos, das mais diversas paragens, nos interesses partilhados, na exuberância da adolescência, no despertar dos sentidos.
Odeceixe será sempre um lugar da nossa memória familiar.

P.S.
Para os que, de Maria Vinagre, só conhecem as casas junto à EN120 :-), aqui têm Maria Vinagre, vista do espaço, o que certamente não acontece com muitas outras localidades por esse mundo fora, num serviço de earth.google.com.

segunda-feira, agosto 01, 2005

Maria Vinagre

Maria Vinagre, © António Baeta Oliveira

Em Maria Vinagre nasceu a minha mulher; mais exactamente na Baía dos Tiros, próximo do mar.
Três fotos: A oriente, a Foia, o ponto mais alto da Serra de Monchique; a ocidente um pôr-do-sol, por detrás das árvores, sobre o oceano; junto à EN 120, entre Aljezur e Odeceixe, o mais visível arruamento de Maria Vinagre, onde identifico a-casa-da-Tia-Vitalina, hoje em dia do primo Armando, e onde o Verão se prolongava Setembro adentro.
Pelos anos 70 ainda a casa era de taipa, o tecto de telha vã, não havia luz eléctrica nem água canalizada e ficávamos até tarde, na noite, à luz do candeeiro a petróleo, jogando monopólio ou outro qualquer desses jogos ditos de sociedade, ou simplesmente conversando, trocando memórias e ideias.
Os amigos visitavam-nos.Maria Vingare, © António Baeta Oliveira



Hoje a casa de férias tem esta chaminé, junto à açoteia de onde tirei as fotografias, e quando ficamos até tarde, na noite, o que é raro acontecer em casa, felizmente (?), lemos ou vemos televisão, bocejando.
Os amigos encontramo-los em Odeceixe no restaurante, no bar ou no Largo.
Maria Vinagre, © António Baeta Oliveira

Quando chegámos, deparámo-nos com o alpendre, sobre a porta, já habitado por esta simpática andorinha, que não tem culpa da porcaria que todos os dias é necessário limpar, só porque a sua mãe resolveu aqui fazer o ninho.

P.S.
Daqui vai um abraço para todos os amigos do Encontro Blogalgarve (foto).